sexta-feira, 19 de abril de 2019

ANÁLISE LITERÁRIA DE "O MUNDO SE DESPEDAÇA"

O romance O mundo se despedaça de autoria do nigeriano Chinua Achebe retrata os costumes e a cultura do povo ibo - que fica na vila de Umuófia, situada no sudeste da Nigéria, ao norte do delta do rio Níger e ao sul do Benué-, e da desintegração desta, a partir do século XIX, com a chegada dos europeus na região, sobretudo dos ingleses, a partir da história do herói Okonkwo, que era na história, conhecido nas nove aldeias e mesmo mais além. Sua fama se deu devido a grandes feitos pessoais, como por exemplo, ter vencido há vinte anos ou mais-quando tinha dezoito anos-, Amalinze, o Gato, que era um lutador que não havia perdido uma luta durante sete anos.
O personagem de Okonkwo é descrito pelo autor com uma precisão física admirável. Era alto, de respiração forte, cujo físico davam um tom severo à sua pessoa. Além disso, era impaciente, com temperamento violento, o que fazia resolver quase tudo pela força bruta porque não tinha muita paciência. Era um homem de ação, um homem de guerra. Era o oposto de se seu pai, Unoka, que era covarde e não podia ver sangue. Mas, paralelamente a isso ele não parecia ser um homem cruel, pois era como era, devido ao medo do fracasso e da fraqueza. Enfim, era um medo de si próprio, de que afinal descobrissem que ele se parecia com o seu pai.
Unoka era um homem fisicamente alto e magro. Preguiçoso, ele não pensava no amanhã a não ser no comer e no beber. Era também um devedor de dinheiro aos vizinhos e era um mau pagador. Era enfim, um “derrotado”, um fracassado. Tinha uma expressão triste, principalmente quando se falava em assuntos de guerra. Suas expressões só melhoravam quando bebia, falava de música ou tocava a sua flauta. Morreu há 10 anos de inchaço - o que era uma abominação para Ani, a deusa da terra, e que de todas as deidades, era a que desempenhava um papel mais importante na vida do povo ibo, por ser juiz  supremo  da  moral  e  da conduta - na Floresta Maligna, já que quando um homem sofria de inchação do estômago ou dos membros, não lhe era  permitido  morrer  em  casa. Unoka morreu sem pagar suas dívidas, e, sem ter nenhum título - um agbala.
Okonkwo era um homem próspero que não recebera nada da vida, nem mesmo de herança. Sua prosperidade veio com a plantação de inhame, que conforme o autor era o “símbolo da virilidade, e aquele que fosse capaz de alimentar a família com os inhames de uma colheita à outra era realmente um grande homem.”. A prosperidade de Okonkwo era visível em seu lar: possuía um amplo compound, com várias habitações rodeadas, cada uma de suas três esposas tinha uma moradia própria, tinha celeiro, galinheiro, e até um relicário, onde fazia as preces para os ancestrais, pedindo proteção para suas mulheres e oito filhos. Nwoye era o filho primogênito de Oknokwo, mas de todos eles, Oknokwo tinha mais apreço por sua filha mais velha Enmzima, pois parecia ser a única que conseguia compreender os humores do pai, e a única com a qual ele conseguia dialogar. Achebe diz que Okonkwo não era homem de falar, mas sim de fazer, porém com sua filha ele conseguia conversar e obter prazer no diálogo, às vezes lamentava pensando que a menina devia ter nascido homem, o que significava que ela mais pertencia à família materna do que à sua família. Parece predominar entre o grupo ibo um sistema social baseado em laços familiares patrilineares - no clã e na linhagem paterna- que relacionava a proximidade do parentesco e a da moradia. Assim, conforme tal lógica, os parentes mais próximos, que seriam os paternos, seriam os vizinhos do lado e parceiros de todas as atividades comunitárias, e os parentes mais afastados, os da mãe, viviam em outra aldeia e só se reuniam com seus familiares em ocasiões especiais.
A história de Ikemefuna também é bastante interessante. O rapaz foi tirado de sua família que fora acusada de matar a filha de Umuófia, que era temida por todas as aldeias vizinhas, por ser poderosa na guerra e na magia, e seus sacerdotes e curandeiros infundiam terror nas redondezas. Esta mulher assassinada era esposa de Ogbuefi Ezeugo, que era um orador poderoso dentre o povo ibi. Ikemefuna ficou três longos anos na casa de Okonkwo, até ser condenado à morte pelo oráculo cuja sentença foi executada pelos anciãos provenientes das nove aldeias e pelo seu “pai” Okonkwo, que havia passado a tê-lo como um filho, apesar de não demonstrar isso, pois demonstrar carinho e afeição, no seu modo de ver a vida, seria sinal de fraqueza.
Após o assassinato de Ikemefuna, Okonkwo passou dois dias sem comer e questionando o seu eu. Mas, pouco a pouco foi voltando ao normal, quando foi ocupando sua cabeça. Mas, a personagem Okonkwo sofre alguns infortúnios ao longo do livro além de carregar a culpa da morte de Ikemefuna. Na Semana da Paz, por exemplo, onde não se podia dizer ou fazer nada duro com outras pessoas, ele se esqueceu desse costume e desrespeitou a deusa da terra, por ter espancado sua esposa mais nova, após ela ter saído para trançar o cabelo de uma amiga e não ter voltado para casa para fazer a refeição dele. Assim, ele foi punido pelo sacerdote Ezeani, e teve que oferecer uma cabra, uma galinha, uma peça de tecido e cem cauris à Ani. Outro evento que ocorre, é quando morre Ezeudu, o mais velho da aldeia de Umuófia e pertencente ao clã de Okonkwo, que recebera três títulos, e que por isso seria enterrado após o anoitecer. No enterro, a arma de Okonkwo explode, e acidentalmente acaba matando o filho de Ezeudu. Mas, como Okonkwo havia matado alguém de seu clã, o que era todo como um crime contra a Ani, ele teve que se retirar da região por sete anos. Além disso, suas casas foram incendiadas e mataram os animais e destruíram o celeiro. Era a “justiça” da deusa da terra sendo feita. Assim termina essa primeira parte do livro, que contém treze subcapítulos.
Na segunda parte do livro, que vai do subcapítulo 14 ao 19, já nos apresenta Okonkwo e sua família em Mbanta, onde estavam seus parentes maternos, e cuja narração do autor, dá para ver que no povo ibo, se valorizava a patrilinearidade, já que temos o seu tio Uchendu interrogando toda a família:
Porque Okonkwo hoje se encontra entre nós? Este não é o seu clã. Somos apenas os parentes de sua mãe. Ele não pertence a este lugar. (...)”, e ele continua “Por que razão, quando morre uma mulher, ela é levada de volta à casa de seus pais para ser enterrada junto aos próprios parentes? Jamais é enterrada junto aos parentes do marido. Por quê? (...) os filhos pertencem ao pai. (...) O lugar de um homem é na terra natal de seu pai quando tudo lhe corre bem e a vida lhe sorri. Mas, quando vêm a tristeza e a amargura, ele encontra refúgio na terra natal de sua mãe. A mãe ali está para protegê-lo.
Na segunda parte também temos a visita do melhor amigo de Okonkwo, Obierika. Ele levava a notícia da invasão e do fim de Abame pelos homens brancos, após esse clã ter matado um deles e o pendurou em uma árvore com o seu “cavalo de ferro” - que era uma bicicleta. Depois de dois anos Obierika volta com notícias de que os missionários tinham conseguido chegar a Umuófia e já haviam começado com as conversões, principalmente dos efulefu, que eram aquelas pessoas que não tinham valor, já que não possuíam títulos. Mas, um dado importante é mencionado: entre os missionários estava o filho primogênito de Okonkwo, Nwoye. O que esta conversão significaria então para a vida futura de Okonkwo? Pela tradição ibo, a adesão de Nwoye à religião do homem branco acaba desfazendo a descendência e decretando a morte de Okonkwo, já que para alcançar a eternidade , o seu espírito deveria sobreviver à morte de seus filhos e netos e bisnetos, e que os netos de seus netos fizessem, no altar familiar, sacrifícios em sua memória.
É válido destacar como a questão da alteridade não estava presente nesse encontro entre os ibos e os missionários, que se achavam superiores a este povo:
- Se abandonarmos os nossos deuses e resolvermos seguir o seu- indagou outro ouvinte -, quem vai nos proteger contra a ira dos nossos deuses abandonados e dos nossos ancestrais?
- Os deuses de vocês não existem e, portanto, não lhes podem causar nenhum mal- retrucou o homem branco. - São meros pedaços de madeira e de pedra . (...).
No diálogo acima, podemos notar uma tentativa de conversão dos africanos ao cristianismo, o que segundo Opoku , resultaria numa separação entre a religião e a vida, o que opunha a base da cultura africana, que prega a unidade entre a vida e a religião. Assim, tais missionários pregavam contra a crença nos espíritos, nas forças sobrenaturais e nos deuses. Nos diálogos a seguir, esta falta de altruísmo é ainda mais latente:
(...) Por acaso o homem branco entende os nossos costumes no que diz respeito à terra?
- Como é que ele pode entender, se nem sequer fala a nossa língua? Mas declara que nossos costumes são ruins; e nossos próprios irmãos, que adotaram a religião dele, também declaram que nossos costumes não prestam .
Em outra parte do livro o autor continua sua narração:
(...) quando essas declarações foram traduzidas para os homens de Mbanta, eles se puseram a rir. Esses sujeitos devem ser doidos, pensaram. Caso contrário, como poderiam acreditar que Ani e Amadiora fossem inofensivos? E que também o fossem Idemili e Ogwugwu? E, assim pensando, alguns homens começaram a ir embora .
Vale ressaltar que não só a falta de altruísmo colocava essas duas culturas em choque. Pois os europeus consideravam os africanos seres primitivos, e sem história. Assim, além do objetivo de explorar os interiores da África, cabia aos europeus civilizar os africanos. Junto a essa ideia de expansionismo territorial estava presente argumentos científicos baseado nas teorias desenvolvidas pelo Darwinismo Social, Determinismo racial e Evolucionismo Social, o que fez que houvesse uma intervenção na África através da imposição da fé cristã e dos valores culturais europeus, que se justificavam pela inferioridade biológica, cultural e espiritual dos africanos. Opoku  afirma que toda a intervenção europeia na África fundamentava-se na ideia de que para a implantação do “progresso”, era preciso transformar e até mesmo destruir completamente a cultura africana. Contudo, como a cultura africana estava imbricada de religiosidade, era preciso conversão dos africanos ao cristianismo pelos missionários, que acabavam sendo, portanto os porta-vozes da cultura e da religião ocidental.
É interessante destacar que em Umuófia, os anciãos concederam uma parte da terra da Floresta Maldita para os missionários pensando que eles morreriam até o quarto dia. Como isso não ocorreu, eles pensaram que o deus deles era mais poderoso, e assim começou a conversão. Assim, na terceira e última parte, que vai dos subcapítulos 20 ao 25, temos a narrativa de como Umuófia mudara durante os sete anos do exílio de Okonkwo, que com o surgimento da igreja, fez a conversão não só de baixa extração do povo, mas também de alguns homens de valor, como Ogbuefi Ugonna, por exemplo, que recebera dois títulos do clã, porem os jogara fora para se juntar aos cristãos. Além da igreja, os homens brancos também trouxeram o tribunal, cujo um comissário desempenhava o papel de juiz, e cujos guardas - kotma- eram pessoas odiadas em Umuófia. Apesar disso, o homem branco trouxe ao mesmo tempo um crescimento do comércio e do lucro em Umuófia, já que o óleo e as sementes de palma atingiram preços elevados . Então se começa a crescer um pensamento de que existia algo de bom ai.
Ainda nesta parte do livro temos o regresso de Okonkwo à terra natal e que não fora tão memorável quanto ele desejara, já que o clã sofrera profundas mudanças durante os seus sete anos de exílio, que parecia quase irreconhecível, já que o clã estava dividindo-se e desintegrando-se, e os guerreiros de Umuófia que havia se tornado fraco como mulheres.
Temos a narração também do desrespeito de Enoch pelos ancestrais, o que desencadeou o grande conflito entre a igreja e o clã em Umuófia . Esse episódio ocorreu durante a cerimônia anual em homenagem à deusa da terra, onde os ancestrais colocados sob a custódia da Mãe-Terra, reapareciam como egwugwu.  Um dos maiores crimes que alguém podia cometer era tirar a máscara de um egwugwu em público o que diminuía seu prestígio imortal. E foi isso o que Enoch fez. O resultado final foi a destruição do compound de Enoch e da igreja. Quando o comissário distrital voltou, ele convocou os seis líderes de Umuófia para ir até ele, incluindo Okonkwo e Okika, que era um grande orador, e lá ficaram presos até pagarem a multa.
Em uma “reunião” que ocorria na praça, de Umuófia, Okonkwo acabou matando um guarda. E logo depois ele se suicida enforcado em uma árvore. O comissário então começa a planejar a escritura de um livro cujo título seria: A pacificação das tribos primitivas do Baixo Níger, contando toda a sua experiência de luta para trazer a civilização a diversas regiões da África. Enfim, o livro termina, porém, quando começa a verdadeira história do desmoronar e da transformação da cultura ibo.
Achebe não nos descreve um mundo africano idealizado, sem contradições e conflitos, e tão pouco uma sociedade igualitária e solidária, que tinha escravos e párias (os osus). Mas, nos descreve uma sociedade que tem história e cultura, inclusive antes da chegada dos europeus, o que confronta com a ideia Europeia que se baseava no paradigma hegeliano, de que não havia fontes no estudo da África antes da colonização, devido à predominância da historia oral e a escassez de fontes escritas . Assim, no livro de Achebe, temos uma sociedade complexa, de cultura diferenciada da do padrão europeu, que é marcada pelo individualismo, competitividade e hierarquizada por títulos honoríficos  que indicavam o “mérito” de um homem e traziam consigo o direito a certos sinais exteriores de distinção como a tornozeleira, o bastão e o tamborete, por exemplo; e que um homem com poucas posses obtinha um grau mais baixo, e para subir de posição, ele era obrigado a pagar maiores recursos, assim, só os homens mais ricos podiam aspirar a elevados títulos.
O autor demostra ainda outras três coisas interessantes no texto: o culto aos ancestrais, o misticismo e a oralidade. O culto aos ancestrais  fica visível quando Unoka rezava a eles pedindo-lhes vida, saúde e proteção contra os inimigos. Já o misticismo é evidenciado em passagens, por exemplo, de quando eles podiam ouvir o choro da deusa na madrugada, ou quando os espíritos apareciam e de suas cabeças saiam fumaça, ou ainda quando a penumbra dos deuses aparecia, porém a sua presença era tão grandiosa que não conseguiam o ver . Por fim, temos a importância da conversação, ou seja, a oralidade, já que os mais velhos contam ao mais jovens as antigas e gloriosas histórias dos ancestrais dos clãs, dos deuses e das relações com os mesmos, como nos dois exemplos a seguir retirados do livro: “Meu pai me contou terem lhe contado que, no passado (...)” e “Contaram-me ontem (...)”.
Em suma, Achebe não cai em reducionismos ou simplificações, ao não tratar a história africanista baseada nos regimes historicistas descritos por Lopes . Assim, no enredo, não vemos uma inferiorização africana e nem tão pouco uma superioridade dos africanos. Temos a narração de culturas diferentes e seus encontros. Além disso, Achebe coloca em destaque a oralidade, que é tão importante nas sociedades africanas. Assim, o romance do autor a partir da ênfase na oralidade, se faz permanente pela palavra escrita, já que no livro Achebe, narra-se gestos, usos, maneiras de ser, de sentir e de pensar, formas de trabalho, de festa, o preparo da terra e a colheita, o que faz com que a cultura africana não seja isolada da vida cotidiana, já que envolve “uma visão particular do mundo, ou melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um todo onde todas as coisas se religam e interagem .”.