quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

FICHAMENTO DO LIVRO "DAS CORES DO SILÊNCIO", DE HEBE MATTOS


* Hebe Mattos de Castro é professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Toda sua formação foi feita na universidade onde ensina. O escravismo é sua especialidade.

*É um livro que ganhou o primeiro lugar no Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, em 1993, e trata de um tema clássico na historiografia , que é sobre o fim da escravidão, porém, constrói-se em perspectiva extremamente original, ao dar voz aos principais atores envolvidos neste processo: senhores, escravos, libertos e homens livres.

- ela discute os significados da liberdade no contexto da abolição inserindo-os numa análise de experiência vivida pelos atores em seu cotidiano político e cultural.

- Segundo Angêla Gomes, o texto esclarece as questões das relações de trabalho no campo, a das bases culturais de uma ideologia de branqueamento e da centralidade do debate jurídico sobre direitos civis em nosso país.

- sua pesquisa utilizou inventários post-mortem e documentos da corte de apelação, que fazem parte da documentação judiciária do Arquivo Nacional, e relatórios dos presidentes de província.


Os significados da liberdade não tem sido um tema frequente na historiografia brasileira, para além da associação com a idéia de não-trabalho. Talvez, seja pela convicção de que fora das elites a liberdade não tivesse nenhum significado. Para Hebe, o contrário é verdadeiro. Ao longo de sua pesquisa, explorar os significados da liberdade, no processo de superação escravista, mostrou-se fundamental para compreender os homens livres, bem como para explicar sua interferência naquele processo. Os significados da liberdade guardam um duplo sentido que informam uma nova questão: a da influência das ações e motivações humanas na história, bem como de seus limites e condicionamentos. Seu trabalho é uma crítica aos trabalhos acadêmicos que polarizam as análises do processo de abolição do cativeiro no país, e tem colocado em evidência que para além das dicotomias entre continuidade e ruptura, estratégias sociais e determinações estruturais, que o fim do escravismo antes de tudo configura um momento privilegiado para se discutirem as relações entre estes polos. - fim da escravidão como momento de mudança dos referenciais culturais, da convivência social e das relações de poder. Nesse contexto, libertos, ex-senhores, homens livres e o Estado foram obrigados a rever atitudes e estratégias. - a discussão entre liberdade e determinismo histórico, procura fugir das dicotomias. Hebe explica que não se trata de fazer opção por uma abordagem que privilegia o reconhecimento de agentes históricos e de suas motivações e responsabilidades, ou de outra, que priorize os fenômenos coletivos e as tendências de longo prazo, que limitam, informam e condicionam a história humana. Para ela, trata-se de integrar e relacionar ambas questões. > problema das durações: Braudel difere o tempo do vivido (privado e cotidiano) e o tempo histórico tradicional, marcado por uma dimensão pública e política, e esta fragmentação analítica da temporalidade resultou numa ênfase nas continuidades sobre as descontinuidades e na fragmentação analítica sobre a a síntese. Nessa pesquisa, Hebe tenta uma abordagem integrada na qual o tempo longo das estruturas culturais e sócio-econômicas se encontra com a imprevisibilidade da política, ao se enfatizar como problema o papel da experiência e da liberdade humana para o entendimento da dinâmica histórica e social.


A abolição da escravidão no Brasil tem sido considerada muito mais do ponto de vista econômico e político do que de uma perspectiva social ou cultural. Os mais detalhados estudos que tratam do liberto após a emancipação, de uma perspectiva sócio-cultural, dizem respeito a São Paulo, desde o clássico de Florestan Fernandes até o trabalho recente de Reid Andrews. O caso paulista, entretanto, não pode ser considerado isoladamente quando se pensa a inserção social do liberto após a emancipação. Além de contar com a terceira população escrava do país, o impacto demográfico da escravidão não tem paralelo com as demais áreas escravistas. - o papel estratégico da diferenciação do espaço social no mundo escravista constitui um dos elementos chaves deste trabalho. Buscando encontrar os últimos libertos e suas expectativas e atitudes em relação à liberdade, este trabalho se concentra no mundo rural do sudeste, onde a escravidão, enquanto instituição, manteve até tardiamente sua vitalidade. Privilegia assim áreas do sudeste velho(em Minas Gerais, sul de Minas e a Zona da Mata, o Vale do Paraíba, fluminense e paulista, a Baixada e o Norte Fluminense) que sofreram com o impacto do recrudescimento do tráfico atlântico e que se mantiveram econômica e socialmente dependentes do trabalho escravo até 1888. - pensar culturalmente o período pós-emancipação, é antes de tudo, explorar os significados da liberdade. O silêncio sobre a cor (ausência da discriminação da cor dos homens livres nos registros históricos), que antecede sobre o fim da escravidão, sem dúvida está relacionado a este significado, assim como sua generalização sugere que se encontra mais que uma ideologia de branqueamento, construída e imposta de cima para baixo.

DIVISÃO DO LIVRO

* Nas duas primeiras partes, a investigação se desenvolve no sentido de tentar entender as matrizes culturais em relação aos significados da liberdade, que emprestavam inteligibilidade às relações sociais no Brasil escravista e, a partir delas, as estratégias, identidades e expectativas sociais, desenvolvidas pelos escravos e pelo conjunto de homens livres em resposta às transformações sócio-econômicas e à crescente perca de legitimidade da instituição escravista.

- Primeira parte: os capítulos dessa parte procuram identificar a partir da análise de fragmentos de história de vida, associada a outros procedimentos, uma matriz cultural comum, que informava a experiência da liberdade e a legitimidade das relações sociais no mundo escravista do sudeste, o caráter polissêmico de suas apropriações diferenciadas, em relação às estratégias dos diversos grupos sociais, e os modos como informou a dinâmica histórica específica da segunda metade do século XIX e foi por ela transformada.

- Segunda parte: procura analisar os processos de construção de identidades, expectativas e estratégias sociais pelos últimos cativos do Brasil frente à crescente perda da legitimidade da escravidão. Do ponto de vista metodológico, enfatiza a análise daqueles fragmentos de história de vida e experiências cotidianas dos cativos. De modo geral, tentou-se mapear uma matriz cultural comum, que informava a política de domínio escravista, no mundo rural do sudeste, em sua relação fundamental senhor-escravo, o caráter polissêmico de suas apropriações socialmente diferenciadas e os modos como informou a dinâmica histórica específica da segunda metade do século XIX e foi por ela desestruturada.

Nas duas últimas partes, tenta uma releitura do processo histórico específico à primeira década que se seguiu à abolição definitiva do cativeiro, nas antigas áreas escravistas do sudeste. Procura mostrar a dimensão surpreendente da dinâmica histórica daqueles curtos anos e o comportamento e a inserção social dos libertos como essenciais para a compreensão da reestruturação dos recursos e da relação de poder e de sua legitimidade no mundo rural do sudeste, após o fim do cativeiro, como também para a forma específica em que se desenvolveu no país uma ideologia racial.

- Terceira parte: procura trabalhar com as expectativas senhoriais em relação à liberdade, no quadro restrito da iminência da extinção do cativeiro, que se anuncia a partir de 1887. Com base em publicações de jornais interioranos (ela não é ingênua pois escolhe folhas que tinham em comum o tipo de inserção que possuíam junto às comunidades em que atuavam e às responsabilidades que assumiam frente ao leitor que procuravam atingir) busca resgatar as expectativas senhoriais sobre o impacto da liberdade, os recursos e diagnósticos a que recorreram para formas estas expectativas, as estratégias que buscaram desenvolver para responder às transformações em curso e suas frustrações frente à perda de influência política e às surpreendentes atitudes de seus ex-escravos, subitamente transformados em homens livres.


Quarta parte: sob o pano de fundo da primeira década republicana, concentro-me no Norte Fluminense, para reencontrar os ex-senhores e suas estratégias, os libertos e suas esperanças, os pobres nascidos livres e seus temores, tentando mapear seus conflitos em torno dos significados da liberdade recém-proclamada.

PRIMERA PARTE

CAPÍTULO I (UMA EXPERIÊNCIA DE LIBERDADE)

História de Domingos como ilustração de um ponto essencial da experiência de liberdade no período escravista, que deita raízes no próprio processo de formação de uma ordem social mercantil e escravista na Colônia Portuguesa: o recurso à mobilidade espacial.

. Essa história ressalta que um mesmo indivíduo podia ser as duas coisas, homens bons e cidadãos ativos, em épocas diferentes de sua história de vida, e que a mobilidade espacial é uma variável que não pode ser tomada como indicador de ausência de padrões culturais.

. A mobilidade representava uma potencialidade de romper o desenraizamento e de reinserção social no restabelecimento de trama de relações pessoais e familiares. Buscava-se a mobilidade como estratégia para resolver os problemas das segundas gerações. Em geral, dispersava-se os filhos em busca de novos laços que lhes garantissem o acesso costumeiro à terra ou de outras formas de sobrevivência.

. O recurso à mobilidade espacial era comum a ricos e pobres. Era um recurso da liberdade, primeira e fundamental marca de seu exercício.

. Não só processos de empobrecimento produziam o homem móvel. A obtenção de alforrias também gerava novos livres, à procura de laços. A inserção social destes homens na sociedade colonial se fez marcada por uma hierarquização racial que separava pretos, brancos e pardos(era usada como forma de registrar uma diferenciação social na condição de não-branco, assim, todo escravo descendente de homem livre [branco] tornava-se pardo, bem como todo homem livre que trouxesse a marca de sua ascendência africana. O termo pardo sintetiza a conjunção entre classificação racial e social no mundo escravista). Os significantes crioulo e preto mostram-se claramente reservados aos escravos e aos forros recentes. A cor da pele tendia a ser por si só um primeiro signo de status e condição social. Limitava não só as possibilidades de mobilidade social, mas também de mobilidade espacial dos forros e de seus descendentes, que permaneciam ameaçados pela possibilidade de reescravização. Portanto, a mais elementar decorrência da liberdade, a capacidade de mover-se, esteve restringida a grande parte dos libertos e de seus descendentes.


liberdade potencializava a propriedade, é uma das dimensões mais perenes dos significados da liberdade.

. a potência da propriedade escrava tendia a se sobrepor às diferenças econômicas e sociais entre os homens livres que buscavam e conseguiam se tornar senhores de escravos. Esta representação da liberdade tendeu não apenas a legitimar a propriedade escrava como também a priorizar nas representações sobre a liberdade o ideal de não-trabalho. De fato, todo homem livre o era enquanto proprietário de escravo ou rentista em potencial. Ser livre seria ser basicamente não trabalhar ou viver de rendas. A liberdade é pensada idealmente como um atributo do homem branco e potencializadora do não-trabalho. Este ideal de liberdade perpassa a qualificação dos homens livres na ordem escravista até a primeira metade do século XIX. . a produção de homens livres despossuídos coloca mais que problemas sócio-econômicos relativos a sua possível funcionalidade, em relação à ordem econômica e social. Coloca, fundamentalmente, questões culturais quanto aos significados da liberdade nesta sociedade. A liberdade era um atributo do branco que potencializava a inserção social e a propriedade. Durante a segunda metade do século XIX, entretanto, está representação de liberdade começa a ter suas bases solapadas, redefinindo os seus significados que continuam a se construir em oposição à escravidão e referenciados estruturalmente ao padrão cultural anterior.

* para Hebe, é mais razoável supor que as expectativas de liberdade, que se abriam aos nascidos livres despossuídos, e o sonho de liberdade dos escravizados foram culturalmente construídas no interior da sociedade escravista e estiveram a ela integradas. Deste modo livres pobres ou escravos agiam socialmente a partir dos códigos culturais correntes naquela sociedade, mesmo que reinterpretados a partir de suas posições sociais.

CAPÍTULO II( UM HOMEM MÓVEL)

Sentido transitório ou provisório da mobilidade espacial torna-se essencial para uma percepção culturalmente integrada dos recorrentes processos de desenraizamento desta sociedade. . o número de lavradores ilustram o peso da mobilidade espacial e a predominância da produção agrícola independente nas possibilidades abertas à garantia da sobrevivência para o conjunto de homens livres. Estas duas situações são aparentemente contraditórias. A produção agrícola, escravista ou familiar, implica em fortes vínculos econômicos e sociais pouco compatíveis com uma extrema mobilidade. A atividade agrícola pressupunha pelo menos uma família constituída e acesso costumeiro à terra. Para ambas as condições, era necessário estabelecer laços na nova região, o que demandava um tempo razoável de socialização e permanência na área. . de todas as ocupações sócio-profissionais dos homens livres as ligadas ao assalariamento agrícola não especializado são as mais marcadas pelo sentido de transitoriedade. O sentido social das ocupações só é atingido plenamente quando se percebe o caráter eventual ou transitório com que era encarado pelos que as realizavam. Eram estas as ocupações típicas do homem móvel e desenraizado, que não geravam necessariamente, laços sociais suficientemente fortes para garantir sua permanência na região ou apresentavam um caráter complementar à exploração de lavoura própria pela família. (aumento do número de negros e mestiços livres começam a fazer com que a cor da pele deixasse de ser uma marca do cativo, e escravos se fingem de livres. Desta forma, o recurso à mobilidade espacial tornava-se cada vez mais acessível a libertos e não-brancos livres solapando uma das bases do controle social no mundo escravista: a cor da pele ). . para os cativos, a capacidade de mover-se (viver sobre si, isto é, aproximar-se quase à indiferenciação do mundo dos livres) era exercitada nas tentativas de fuga e nas alforrias e referia-se a um sentido específico de liberdade, que significava, liberdade para escolher e estabelecer novos laços de amizade, família ou patronagem, que conferissem ao homem livre um status específico numa dada comunidade. Ser lavrador significava que estes laços preexistiam e, mesmo sendo negro ou mestiço, jamais seria confundido ou tratado como escravo. * O sentido de transitoriedade (mobilidade) ou a situação de agregado (casa e roça próprias), além da ausência da coerção física, era assim fundamentais para a afirmação da liberdade frente à realidade da escravidão. * Nas últimas décadas da escravidão, alfaiates, carpinteiros, lavadeiras, quitandeiras, costureiras travavam complexas relações pessoais nas vilas do interior com larga predominância de forros e seus descendentes. Estabeleciam assim, verdadeiras comunidades, abertas aos recém-chegados, mas capazes de oferecer alguma estabilidade a seus membros. *Viúvas, mães solteiras, forros e escravos solteiros, encontravam nas vilas do interior um lugar social. Em cada um destes casos, escravos, libertos e migrantes, muitos deles descendentes de ex-escravos, conviviam criando laços que permitiam romper com o desenraizamento e com a tendência à mobilidade. Estas relações tinham, entretanto, significados diferentes para livres, que as entendiam como condição para a sobrevivência em liberdade, e para os escravos, que as entendiam como uma tentativa de aproxima-se dessa tentativa. * Numa sociedade marcada pelas relações pessoais, estabelecer laços era essencial para a obtenção de um lugar, por mais obscuro que fosse, no mundo dos livres. Os reiterados processos de desenraizamento faziam parte estrutural deste mundo e seus indivíduos possuíam recursos culturais suficientes para conviverem com esta realidade e se reinserirem na ordem social sem que se tornassem socialmente anômicos ou desclassificados.

CAPÍTULO III (LAÇOS DE FAMÍLIA)

*O modelo de família patriarcal, de Gilberto Freire, marcou lugar na academia. Este conceito, abriga uma significação muito mais ampla do que o de família extensa (morada comum de mais de uma geração da mesma família e seus agregados), implica numa forma específica de organização do poder e das funções familiares dentro dos grupos de elite, além da presunção de que escravos e dependentes livres construiriam sua identidade familiar em relação à casa grande, incapazes de formar e reproduzir culturalmente suas próprias famílias.

*Para a realidade do centro-sul, Oliveira Viana, formula a noção de clã, onde a única solidariedade possível, na sociedade colonial, era a verticalmente construída a partir do grande domínio rural, que reuniria em torno do chefe familiar, seus filhos e genros, dependentes livres e escravos.

> Tanto clã quanto família patriarcal são conceitos complexos que ultrapassam e muito a coabitação, tendo em vista que a maioria dos escravos habitavam as senzalas, e os dependentes livres habitavam construções separadas no interior das grandes propriedades. Além disso, ambos autores, reportam-se às suas próprias experiências sócio-culturais para realizar suas interpretações da sociedade escravista.


Numa sociedade em que os processos de desenraizamento e as relações pessoais exerciam papéis estruturais, o acesso às relações familiares não pode ser tomado como um dado natural, nem a mobilidade como indicador de anomalia. Ambos os processos só encontram significação quando pensados em conjunto, como faces de uma mesma moeda. A contradição entre a intensa mobilidade espacial das pessoas livres e a universalização das relações familiares entre os que se consideravam lavradores é apenas aparente. Um migrante podia lograr reinserir-se socialmente através do casamento ou de união consensual numa família da nova região. Assim, a relação familiar tornava-se potencializadora de propriedade, mesmo que apenas de uma situação em terra alheia e sem escravos.


Fixar-se numa região significava estabelecer laços. O casamento ou mesmo a relação consensual com uma caseira significava estabelecer relações com uma família da região. Significava deixar de ser estrangeiro ou estranho à comunidade. O casamento e a formação de uma família nuclear estável tornava-se pré-condição para a produção independente. Os que conquistavam relações familiares estáveis é que chegavam a estabelecer relações de continuidade com a posse de terra e relações de solidariedade horizontal e vertical com a vizinhança, configurando-se como lavradores, mesmo quando não contavam com a propriedade legal da terra ou com o recurso do trabalho escravo. . a família nuclear era pré condição para a atividade agrícola independente que não dispusesse de capital e que um elevado número de filhos era sempre desejado nas relações matrimoniais (quanto mais filhos, mais prosperidade, isto é, quanto mais filhos, mais braços para trabalhar.) . da mesma forma que a mobilidade espaciais, a família nuclear e a rede de relações pessoais e familiares a ela ligada permanecem essenciais na experiência dos homens livres. Também para os escravos, a obtenção de maiores níveis e autonomia dentro do cativeiro parece ter dependido, em grande parte, das relações familiares e comunitárias com outros escravos e homens livres da região.

. mesmo para o estabelecimento de laços de solidariedade vertical mais permanentes, a formação de uma família ou o pertencimento a uma já existente era precondição, na medida em que estas solidariedades culturalmente sólidas e não simplesmente táticas eram em geral estabelecidas entre famílias e não entre indivíduos.


proximidade entre escravidão e relações familiares tornava culturalmente complexas e específicas as relações entre senhores e escravos. . relações entre iguais que socializavam escravos, livres, pobres e senhores para uma convivência entre desiguais. Pode-se falar numa comunidade escrava (formada por relações pessoais e familiares entre os cativos), numa comunidade de lavradores de roça (integradas pelas práticas de reciprocidade entre a vizinhança e por estreitas relações familiares e pessoais entre seus membros) ou ainda numa comunidade política, que controlava negócios e poder (o comendador e seus familiares). Estas esferas diferentes de socialização encontravam-se integradas por um mesmo código cultural, que reforçava o lugar social de cada um e as formas legítimas ou possíveis fugas de se transitar entre elas. Assim, a escravidão era praticamente a única relação social efetivamente institucionalizada. A estabilidade deste arranjo social não se construía apenas sobre a violência e a desigualdade de recursos, mas principalmente sobre o costume, que abria atalhos e provia recursos para conviver com a realidade da violência e da desigualdade.

CAPÍTULO IV(A POTENCIA DA PROPRIEDADE)

Qualquer título de propriedade tornava-se vazio se não se provasse a revalidação das sesmarias. Paralelamente, a legislação colonial, através das ordenações filipinas, tradicionalmente consagrara a posse (efetiva ocupação) como recurso legal para a obtenção de propriedade. Após a emancipação política e a revogação do instituto das sesmarias, esta segunda via se tornaria a forma predominante de constituição da propriedade fundiária no país. A compra, venda, inventários, arrendamentos eram capazes de sancionar direitos de propriedade, desde que tais ações fossem reconhecidas pelo conjunto de pessoas envolvidas nas transações, especialmente vizinhos. Mesmo na existência de títulos legais, o reconhecimento costumeiro e consensual do direito de posse de alguém dependia de seu efetivo poder, construído em bases costumeiras sobres as terras em questão.


2 tipos de posse capazes de gerar direitos de domínio e atos legais como compra, venda ou partilha: posse de culturas e benfeitorias (presunção de domínio apenas sobre estas que podiam ser alienadas ou passadas como herança) como simples detenção ou retenção da terra e, a posse da terra propriamente dita, que gerava presunção de domínio sobre uma determinada extensão de terreno que podia ser arrendado, alienado, deixado em herança ou emprestado. . sem a reavalidação de sesmarias, ambas as presunções de domínio se constituíam primeiro de fato e depois de direito, a partir de escrituras de compra e venda ou formais de partilha (que sancionava direitos de propriedade, isto é, de posse e domínio, sobre culturas e benfeitorias. Este típico pré-capitalista sistema de propriedade perpassava todas as camadas sociais do mundo rural e era necessário o reconhecimento de todos para que funcionasse. ). . ao comprar uma “situação” nos formais de partilha, o domínio e a posse sobre as terras não emprestava os proprietários da terra o poder de escolher individualmente todos os seus agregados. O domínio e posse das terras engendravam apenas a faculdade de escolher que áreas incultas em sua propriedade poderiam ser cedidas por favor ou arrendadas. A prática frequente de compra e venda de situações e seus formais de partilha são fortes indicadores de que se reconhecia estabilidade a esse tipo de propriedade.


Interessante confrontar o sentido monetário que apresentava o domínio sobre as terras, generalizando a prática do arrendamento, com a segurança e estabilidade dos arrendatários sobre suas situações. . interpretar a maioria de não proprietários de terra como evidência de condições precárias em que se desenvolvia a roça de subsistência é um erro, pois é preciso considerar o que representavam os inventários (os titulares eram senhores de escravos e jovens, portanto adquiridos no mercado, e quando os cativos se tornam caros e começa haver um questionamento das práticas costumeiras de acesso à terra, que resultará na Lei das Terras, em 1850, os arrendatários e situantes tem que reverem suas estratégias.). O impacto da lei recriaria uma base legal para as propriedades formadas ao longo dos 30 anos que separavam a revogação do instituto das sesmarias e a própria lei, assim, as relações costumeiras , até então presidindo a prática fundiária perdem seu substrato legal. Enfim, se desenvolve um processo de fechamento do acesso ao título de propriedade de situações ao conjunto dos lavradores de roça, tornando a estabilidade da pequena produção agrícola dependente única e exclusivamente das relações costumeiras, que não se faziam mais juridicamente sancionadas. * O título de propriedade nunca havia sido uma garantia que se sobrepusesse às relações de poder para os proprietários de situação. Eles refletiam a face legal de práticas consensualmente respeitadas pelas elites agrárias e seus dependentes rurais. Estas práticas se construiam com base em relações pessoais que não se desfaziam apenas pelo desmoronamento de seu suporte legal.


Os laços de família são novamente acionados para reforçar a potência da propriedade como definidora da liberdade, em oposição à escravidão que era economicamente reforçada nos grandes empreendimentos. Os laços de família continuavam, portanto, a permitir a reprodução de uma experiência de liberdade que se construía em oposição à escravidão, mesmo que se desfizessem as condições materiais em que se baseava a construção de uma identidade senhorial entre os homens livres. . nas últimas décadas da escravidão, apesar da precariedade legal das formas costumeiras de acesso à terra e da monopolização social da propriedade escrava pela grande fazenda, a mobilidade espacial, os laços de família e o acesso costumeiro à terra ainda abriam perspectivas de diferenciação do escravo e potencializavam a propriedade da terra para os mais bem sucedidos entre os lavradores de roça.

CAPÍTULO V (A COR INEXISTENTE)

*O uso das expressões negro e preto faziam referência à condição escrava atual ou passada (forro). Nem uma só vez encontrou na documentação a expressão negro/preto livre. Os homens nascidos livres eram brancos ou pardos.


Havia um contexto histórico e social (cresce o número de negros e mestiços livres; extinção do tráfico atlântico de escravos e encarecimento dos cativos = propriedade escrava inacessível; qualificação profissional começa a designar o status social desconstruindo o “viver de” ) em que se reforçava economicamente o escravismo num quadro de crescente perda de legitimidade da escravidão, tributária das idéias do século e decorrente da quebra de solidariedade no conjunto de homens livres em relação à propriedade cativa e à sua identidade racial. A identidade branca entre os homens livres como senhores de escravos torna-se progressivamente fragilizada. . autonomia e trabalho assalariado começam a balizar as diferenças entre escravidão e liberdade, mais que trabalho e não trabalho. Há assim, um desaparecimento da cor branca como critério cotidiano de diferenciação social, pois ser classificado como branco era, portanto, por si só, indicador da condição de liberdade. Enfim, o crescimento do número de negros e mestiços livres e também de brancos empobrecidos tendeu a esvaziar os significados da cor branca como designador isolado de status social. Cria-se assim, a ausência de cor. . o sumiço do registro de cor consiste num dos processos mais intrigantes e irritantes ocorridos no séc. XIX. Inventários, testamentos ou escrituras públicas tradicionalmente não a menciona. No geral, calava-se sobre o item cor, a não ser quando se tratava de um recém-liberto, em geral estranho e suspeito na localidade onde corria o processo, quando então se tornava o preto, o pardo ou o forro tal. Apenas o liberto, e não mais os brancos ou os antigos pardos livres aparecem, nas décadas de 1850 e 1860, na qualificação de testemunhas racialmente identificadas. . Pode se argumentar que a ausência de cor está associada a um processo cultural de branqueamento, para Hebe, entretanto, o alcance desta transformação é maior que a generalização social de um ideal de branqueamento, pois para ela, quando a cor era mencionada por obrigatoriedade durante o século XIX, isto se fazia como referência à condição cativa, presente ou passada, e à marca que esta impunha aos descendentes. A noção de cor não designava matizes de pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas buscava definir lugares sociais, assim, a cor inexistente antes de significar branqueamento era um signo de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a liberdade era precondição. * O processo de indiferenciação entre brancos pobres e negros e mestiços livres teria levado à perda da cor de ambos. Não se trata necessariamente de branqueamento, na maioria dos casos, é apenas silêncio. O sumiço da cor referencia-se a uma absorção de negros e mestiços no mundo dos livres e também a uma desconstrução social do ideal de liberdade herdado do período colonial (construída com base na cor branca). *A experiência de liberdade continua, entretanto, definindo-se em oposição à escravidão. A liberdade não era mais necessariamente branca, mas os escravos como também os forros recentes, continuavam negros. Preserva-se assim, para a maioria dos homens livres, o caráter do assalariamento, em busca da autonomia capaz de afirmar, independentemente da etnia, a condição de liberdade. . homens livres iniciam a construção de uma identidade própria, que se fazia apenas em oposição ao escravo (mobilidade - trabalho temporário; autonomia - trabalho familiar) e não mais como identificação com os senhores (propriedade). Enfim, a identidade que se constrói é basicamente defensiva, pois tratava-se de assegurar diferença em relação ao escravo. 

SEGUNDA PARTE

CAPÍTUO VI (SOB O JUGO DO CATIVEIRO)

A extinção do tráfico africano no Brasil, em 1850, determinou uma profunda inflexão na experiência de cativeiro bem como para os que se viam envolvidos em administrar o controle social dos trabalhadores escravos. . extinção do tráfico como um alívio para boa parte da elite, pois o excesso de escravos em determinadas áreas de expansão econômica, era problemático. . desequilíbrios regionais provocados pelo tráfico interno pois ele representou um processo de concentração social da propriedade cativa, produzindo adaptações econômicas e alterações na vida cotidiana de senhores (desenvolviam uma sofisticada economia política nas decisões de venda, hipoteca ou partilha de escravos), demais homens livres e escravos (condição de mercadoria é ampliada e tem suas bases redefinidas). A concentração social de propriedade cativa ajudou a deslegitimar a escravidão. > o sentido geral das transações no mercado interno de escravos de pequenos para grandes senhores, de áreas antigas para novas, provoca tensões nas últimas décadas da escravidão. Estes escravos traziam para o seu novo lar expectativas sobre as relações senhor-escravo, que nem sempre correspondiam a realidade. Tem-se, assim, um contexto que tendia a reforçar e cristalizar os laços comunitários entre cativos. A sociabilidade escrava esteve marcada pelo reforço das relações familiares no suceder de gerações nascidas sobre o cativeiro e pela experiência ampliada da desestruturação desta rede, imposta pela condição de mercadoria. Estas duas se desenvolviam ainda num quadro social e político tendente a deslegitimar a escravidão e a ampliara as alternativas dos cativos de acesso à alforria. * fazendas antigas e novas, comunidade escrava e tráfico interno, emergiram com vida e cores que nenhum cálculo demográfico pode substituir.

CAPÍTULO VII (CONFLITO E COESÃO NA COMUNIDADE ESCRAVA)

*Diferença de feitor livre e feitor escravo: o primeiro era antes de tudo um representante do senhor, que infundia respeito; teria uma relação com o senhor de esmerada cortesia e mútua confiança que o elevaria ao nível da família senhorial. Um feitor escravo seria apenas a máquina que castiga sem vontade própria e, apenas, infundia medo. Sua única relação com o senhor era a de submissão, a mesma dos demais escravos.


Na segunda metade do século XIX, a condição cativa, reforçada pela hegemonia da vida coletiva nos grandes plantéis, tenderia a reforçar as solidariedades horizontais entre os escravos e as próprias possibilidades da construção de uma comunidade cativa dotada de especificidade e autonomia cultural frente aos demais segmentos da sociedade. Por outro lado, as próprias condições que criavam esta possibilidade eram essencialmente frutos da violência do cativeiro. Desde que houvesse condição para tanto, afirmar-se enquanto pessoa no interior da condição cativa significava também diferenciar-se na homogeneidade artificialmente construída pela escravidão. . a noção de comunidade escrava tem sido recuperada pela historiografia brasileira a partir da influência da literatura americana, particularmente o livro de Herbert Gutman, sobre a família negra no sul escravista que reformulou a noção de desestruturação da família escrava. Da identificação demográfica da família escrava ter-se-ia evoluído para a noção de comunidade escrava, construída sobre as bases institucionais da família e da religião, no interior da plantation, onde as relações entre casa grande e senzala se faziam, perseverando uma forte de autonomia nas formas próprias de sociabilidade, no interior dos 2 grupos sociais. Numa e noutra versão, identificam-se, na experiência do cativeiro, as bases da formação de relações comunitárias (baseada em relações pessoais) como a convivência coletiva na plantation ou as práticas estabelecidas pelo protestantismo negro, sobre as quais se erigiu uma identidade negra no país, com um verdadeiro sentido protonacional. . no Brasil, as pesquisas demográficas, demonstram que em áreas e períodos em que eram correntes os casamentos de cativos legalmente sancionados pela Igreja Católica, a família nuclear e estável, foi uma possibilidade majoritariamente realizada pelas mulheres cativas, que viveram em plantéis com mais de 10 escravos. Relações estáveis entre plantéis diferentes eram não somente comuns como frequentes, mesmo que raramente sancionados pela Igreja. Tais constatações são suficientes para fazer cair por terra aquelas interpretações que insistem em ver a ausência de padrões familiares como decorrência lógica da violência da escravidão. Entretanto, as discussões familiares sobre os significados culturais das relações comunitárias teve que seguir por rumos diferentes, pois é sobre a mulher cativa e seus filhos crioulos (nascidos no Brasil) é que se constrói a possibilidade de família escrava. > No Brasil, tráfico e escravidão foram sinônimos, mesmo após a extinção do tráfico atlântico, em 1850, quando o tráfico interno aumenta. Seu impacto sobre as relações comunitárias entre os cativos não se encontra apenas no seu potencial de separação de casais e seus filhos. Pelo contrário, na vigência do tráfico africano, era muito mais fácil preservar as relações familiares entre os cativos. O desequilíbrio por sexo dos plantéis não impossibilitava as relações familiares, mas fazia da família e dos recursos que comumente a ela associados, eram possibilidades abertas, mas não acessíveis a todos os cativos. Deste modo, a plantation, com o trabalho coletivo, mostrou-se sempre a face mais visível do cativeiro. Assim, relações comunitárias, forjadas sobre a base da família e da memória geracional, antes que conformar uma identidade escrava comum, engendram para alguns (os grupos mais antigos no plantel) a possibilidade de se distinguirem frente ao estereótipo mais comumente associado à escravidão (a falta de laços, o celibato, os castigos físicos e o trabalho coletivo). > as distinções entre africanos e crioulos possivelmente estiveram atreladas, entre outros fatores, à distinção entre a antiguidade no plantel ou na região e os vínculos a partir daí estabelecidos.


INTENÇÃO DA AUTORA: demonstrar que a gestação de relações comunitárias entre os escravos significou mais uma aproximação com uma determinada visão de liberdade que lhes era próxima e que podia ser atingida através da alforria, do que a formação de uma identidade étnica a partir da experiência do cativeiro. A família e a comunidade escrava não se afirmaram como matrizes de uma identidade negra alternativa ao cativeiro, mas em paralelo com a liberdade. Tem-se, assim, duas possibilidades demográficas, no interior dos grandes plantéis do Sudeste, na segunda metade do século XIX: os plantéis antigos, em que a lógica demográfica da família escrava já se teria sobreposto à lógica demográfica da plantation (maioria de homens adultos) e plantéis novos, onde a plantation se faria com escravos adquiridos do tráfico interno. No primeiro caso, a contínua chegada de novas aquisições, tenderia a reforçar as tensões inerentes à absorção destes cativos pelos grupos mais antigos e a eles reservar as condições de vida culturalmente identificadas com o cativeiro. Não custa repetir que o recrudescimento do tráfico interno e a crescente perda de legitimidade da escravidão na sociedade abrangente constituem os 2 componentes essenciais na determinação deste contexto. . designações parceiro e preto: o significante preto era mais usado do que os seus equivalentes escravo ou cativo. Constrói-se, assim, na própria nomeação e anunciação das relações entre os envolvidos em cada conflito, a noção de uma comunidade escrava, formada por parceiros pretos, ou seja, uma comunidade de iguais, por sua condição de propriedade de um mesmo senhor e por sua situação racial. Pode-se concluir, portanto, que o significante preto guardasse para senhores ou escravos um forte sentido de desindividualização. Em momento algum ele é positivamente acionado na construção de uma identidade étnica. É sinônimo de escravo e busca essencialmente caracterizar esta condição. O substantivo parceiro era para designar um senhor comum. Frente a este discurso jurídico, os cativos respondiam criando outras identidades positivamente construídas, como os laços de família e a solidariedade das atividades ( da fuga ao trabalho) efetivamente partilhadas. Nesse contexto, se a grande plantation se constituiu como o locus privilegiado para a formação de uma comunidade escrava, a diferenciação interna desta comunidade, do ponto de vista dos cativos, era um fator essencial de sua constituição, enquanto mecanismo de afirmação da dignidade humana dos escravos. Qualquer identidade construída apenas com base na homogeneidade conferida pela condição cativa, não ultrapassava a visão senhorial que lhes era imposta. Deste modo, a identidade potencialmente construída através das noções de preto e parceiro e o nível de individualização pessoal ou coletiva que se podia construir, sob as condições de cativeiro, revelam-se campos de luta, em torno dos quais senhores e escravos teciam significações politicamente distintas. Isto é, por diversas vezes os senhores investiram na diferenciação interna da experiência do cativeiro, enquanto estratégia de controle social de seus escravos. Era socialmente interessante que africanos disputassem com crioulos, que cativos se esforçassem para se tornarem feitores ou ter acesso privilegiado às roças de subsistência.


Feitor: diferenciação construída a partir da autoridade senhorial. Espera-se do escravo feitor que sua solidariedade aos interesses senhoriais se sobreponha à possível identidade com seus parceiros. Confere-se-lhes privilégios e espera-se, ainda, que consiga obter a colaboração e o respeito dos demais escravos. O que pressupõe que não apenas a vontade do senhor, mas também as diferenciações internas dentro dos plantéis atuaram na seleção destes cativos especiais. A opção generalizada em muitos estabelecimentos por feitores escravos estava sem dúvida ligada à maior eficiência destes para obterem a colaboração e o respeito de seus subordinados. Temos assim, um quadro oposto. Sobre uma comunidade cativa previamente construída e relativamente diferenciada, cria-se de fora, uma hierarquia que busca atender aos interesses senhoriais. O resultado deste procedimento foi uma maior eficiência dos serviços. . a continua chegada de novos braços, primeiro africanos e depois crioulos, através do tráfico interno, bem como a recorrente formação de novos plantéis, majoritariamente masculinos, faziam da violência, do celibato e do castigo físico, a face mais visível e identificável da escravidão. A comunidade escrava que através das gerações se consolidava no tempo, o fazia de forma diferenciada. Assim, tantos os fatores de homogeneidade como os de diferenciação podiam ser priorizados pelos cativos ou por seus senhores, emprestando-lhes significações politicamente distintas. Os momentos de tensão e rebeldia coletiva tendiam a resignificar a noção de parceiro na experiência dos cativos. O cotidiano no cativeiro tendia a valorizar a construção de identidades sociais outras que não aquelas impostas pela condição cativa.


O aprofundamento das relações comunitárias entre os escravos foi fundamentalmente um exercício de aproximação da experiência de liberdade com a qual conviviam. Como no mundo de homens livres, a família e a autonomia escrava foram os 2 eixos básicos sobre os quais se constituiu esta comunidade diferenciada dentro da experiência mais evidente de desenraizamento do cativeiro. A mulher escrava ocupava um papel crucial dentro deste contexto. . a comunidade escrava se por um lado permitia ao escravo a ampliação de seus espaços de autonomia dentro do cativeiro e uma aproximação com a experiência de liberdade, por outro parece ter significado uma expressiva diminuição de custos para o senhor, com a vigilância e segurança dos cativos. O aglomerado de escravos, advindos do tráfico interno ou externo, foi uma situação que exigiu sempre altos índices de vigilância e violência na manutenção da ordem e disciplina no cativeiro . espaço próprio para a economia do escravo, especialmente em seus dias e horas de folga, parece ter sido uma prática acessível à totalidade dos cativos. Se os escravos roubavam para vender é porque tinham acesso às vendas da vizinhança. > os recursos dos escravos a serem utilizados neste tempo livre estavam, entretanto, sujeitos a inúmeras gradações, como a divisão sexual dos trabalhos (mulheres que trabalhavam em roças como os homens, lavavam e passavam roupas de seis maridos ou recebiam isto de outros homens de seu plantel), uma diferenciação sócio-econômica e antiguidade no plantel e estabilidade de relações familiares. Fazem-se, ainda, múltiplas referências a gratificações em dinheiro recebidas por escravos. Nos pequenos plantéis, são comuns ainda os registros de participação de escravos em mutirões e ladainhas. Todas estas relações compõem um forte sentido de rotina e previsibilidade na forma com que são referidos. Por outro lado, com o mesmo sentido de rotina e previsibilidade, também contextualizam as rígidas condições de disciplina da vida coletiva na plantation. A forma, antes e depois dos serviços; o alinhamento no eito, a violenta supervisão do feitor, o castigo exemplar, as senzalas trancadas. Condições de vida e trabalho que se diferenciam radicalmente da experiência de cativos domésticos, de pequenos senhores, ou daqueles que viviam nas vilas e povoados. > da superposição destes dois contextos, emergem paradoxalmente uma comunidade escrava que, quanto mais aprofundava suas relações familiares, potencializava seu acesso a espaços econômicos e familiares de autonomia e distinguia-se, em maior ou menor grau, dos cativos recém-chegados e dos aspectos mais rigidamente restritos daquela disciplina. Esboça-se assim, uma política de domínio que se escora quase que totalmente no terror e na violência. Em estabelecimentos antigos, o mesmo não deixava de prevalecer mas sem dúvida, a comunidade preexistente, exercia algum tipo de papel neste processo de adequação do cativo à nova realidade da plantation. > São as mulheres que constituíam o núcleo de uma elite na comunidade cativa através da família, da roça e do próprio distanciamento físico das senzalas coletivas. É a esta comunidade que o paternalismo, entendido como um código de dominação pessoalizado, passível de leituras distintas por senhores e escravos, aparece como eixo principal das relações de dominação. >É nesse contexto, também, que a possibilidade de alforria e do pecúlio do cativo, combinando autonomia escrava e autoridade senhorial, completam o círculo de uma política de domínio que buscava legitimar a escravidão entre os próprios escravos, enquanto abria perspectivas concretas de negar-se como cativo no interior do próprio cativeiro.


Em momento algum a comunidade cativa na plantation foi uma comunidade dual. A mobilidade social limitada possibilitada pelo estabelecimento de relações pessoais e familiares horizontais, no interior do cativeiro, do cativeiro à liberdade, do desenraizamento à propriedade, mas sempre tributárias de relações hierárquicas, que lhes conferiam estabilidade, foi a chave das políticas de domínio que, não sem contestações, conferiam estabilidade às relações de poder no Brasil escravista.


As clássicas comparações entre a escravidão brasileira e a dos EUA oscilaram sempre entre percepções radicalmente opostas. Ora a alforria fazia da escravidão ibérica um jugo suave e patriarcal frente à sociedade sulista. Não há escravidão suave ou cruel, ela dispensa adjetivos. Para Hebe, uma compreensão integrada da dinâmica social da escravidão deve considerar como essenciais ambos os aspectos que tendiam a ser tomados de modo isolado: o tráfico e a alforria. * O objetivo de Hebe ao enfocar o tema da comunidade escrava, foi mais que mapear o engendramento de relações comunitárias, combinando acomodação e resistência, na vivência específica dos escravos. Ela procurou demonstrar que as fronteiras entre acomodação e resistência tenderam a ser definidas por um claro objetivo de negar uma imagem socialmente generalizada de escravo e escravidão. As confusões entre escravidão e liberdade eram fruto não apenas de estratégias senhoriais, mas de um esforço dos cativos que tomaram um sentido eminentemente político. Antes de forjarem uma identidade étnica, a partir da vivência do cativeiro, formaram uma visão de liberdade a nortear a ação e a auto-representação dos últimos cativos da América.

CAPÍTULO VIII(UMA RELAÇÃO PERIGOSA)

por mais de 3 séc a escravidão no Brasil reproduziu-se com base na recorrência da escravidão de africanos nascidos livres. Uma elaborada pedagogia de terror engendrava a submissão do cativo africano e continha as fugas, dentro de limites que não comprometessem o sistema. O registro de fugas é pequeno. Só eram mencionados quando acompanharam roubos ou redundaram em assassinatos. Ao terror senhorial, correspondeu um profundo temor de possibilidade de uma ação coletiva, por parte dos escravizados, como a do Haiti. No entanto, em 1850, há uma interrupção do fluxo de novos escravizados, e concomitantemente, a solidariedade dos homens livres com a instituição escravista começara a perder suas bases de sustentação. Para as elites, a continuidade do cativeiro só podia ser defendida com base numa argumentação pragmática que procurava antes retardar do que impedir o desmoronamento do sistema. Paralelamente, cada vez menos homens livres conseguiam acesso à propriedade cativa e se faziam solidários com sua manutenção. Apesar disso, o sistema continuava a expandir-se com base no trafico interno do braço escravo. A historiografia, especialmente a paulista, tem enfatizado a insegurança, gerada por este acúmulo de cativos crioulos. . Para tanto, o paralelo com os africanos recém-chegados do tráfico negreiro é fundamental. Num caso e noutro, a face violenta da moeda escravista toma dimensões desproporcionais. A instituição da face paternalista do sistema pressupunha tempo de convivência entre os cativos e destes com os seus senhores. O segredo do código paternalista de dominação escravista estava no poder senhorial de transformar em concessão toda e qualquer ampliação do espaço de autonomia dentro do cativeiro. A violência era ainda parte integrante deste sistema, mas passava a responder a certas regras ou expectativas que acabavam por legitimá-la frente aos próprios escravos. >Os cativos comprados no tráfico interno, entretanto, traziam de sua experiência anterior, a vivência de códigos costumeiros (cativeiro justo ou injusto, bom senhor e senhor cruel), que precisavam no mínimo ser reatualizados. Aos buscarem esta reatualização, eles redefiniam seu próprio sentido. A noção de um cativeiro justo ou do bom senhor está reconhecendo a própria legitimidade da instituição escravista. > O africano recém-chegado vinha sem família, sem pecúlio, sem tempo livre, sem qualquer direito a não ser o que a boa vontade senhorial resolvesse lhe conceder. >não se pode deduzir de que os cativos comprados no tráfico interno tivessem uma propensão ao assassinato de senhores e feitores maior ou menor do que outros escravos. O que se destaca é o caráter específico que as agressões aos feitores e senhores tomavam, quando escravos, que conheceram outras experiências de cativeiro, eram os autores. Eram majoritariamente crimes que quando não executados coletivamente, pressupunham uma cumplicidade mais ampla dentro do plantel; os cativos apresentavam um verdadeiro arrolamento de direitos que deveriam ter e que não estavam sendo cumpridos pelo feitor ou senhor assassinado. Com direitos não há escravos. Antes da extinção do tráfico, os cativos de maiores recursos comunitários pressionaram mais por privilégios do que por direitos. É verdade que eles leram as concessões senhoriais e as práticas costumeiras sancionadas como direitos pessoais que os fazia, entretanto, um pouco menos escravos do que os outros. * A generalização do tráfico interno, a troca de experiências de cativeiros, especialmente no contexto das fazendas novas, onde tudo ainda estava para ser estabelecido, tendia a levar os escravos a proporem ainda de forma inusitada um código geral de direitos dos cativos. A própria atuação do escravo, a partir do final da década de 1860, no sentido de reconhecer legalmente alguns destes direitos (a não separação de famílias e o direito ao pecúlio e à autocompra) conferiam um caráter cada vez mais político às ações cotidianas dos cativos. Não podemos subestimar sua força de aceleração do processo num contexto de crescente perda da legitimidade da escravidão, mas também não pode ser tomada como elemento único ou central no desmanchar das condições políticas e morais que davam sustentação à dominação escravista. *destaca o papel central que a possibilidade de alforria desempenhava na política de domínio escravista. Ela representava não somente o recurso moral dos senhores na efetivação da dominação escravista , como determinava o eixo a partir do qual se engendrava a diferenciação social, internamente à experiência do cativeiro. Pressionar por direitos inerentes aos escravos representava em última instância, arguir a universalização das condições dentro do cativeiro, que poderiam potencializar o acesso à alforria. 

CAPÍTULO IX (SOBRE O PODER MORAL DOS SENHORES)

Para ser escravo ou homem livre era preciso reconhecer-se e ser reconhecido como tal. Sem o consenso social requerido para vivenciar ambas as condições, os títulos e documentos faziam-se então necessários, bem como a arbitragem jurídica da Coroa. Percebe-se, ainda, que uma família de cativos podia sucessivamente partilhada através das gerações, sem que se rompessem os laços de parentesco e a rede de ajuda mútua que geravam. Evidencia-se, ainda, que, também para os escravos, especialmente para os nascidos no Brasil, relações pessoais horizontais e dependência pessoal se justapunham e se interinfluenciavam, para possibilitar o trânsito entre escravidão e liberdade.


O acesso à família e esta capacidade não eram variáveis desconexas. Os estudos sobre cartas de alforria têm evidenciado que os cativos crioulos e as mulheres e crianças foram majoritariamente seus beneficiários, ao mesmo tempo que afirmam um peso variável, mas sempre expressivo, das alforrias condicionadas e remuneradas.


O recurso da força, a maioria de africanos, a utilização de marcas ou o isolamento rural predominantemente fizeram com que estes conflitos, na esfera jurídica, fossem aparentemente raros, antes da primeira lei de extinção do tráfico, que coincide com o fim do Primeiro Reinado. . Em sua maioria, estas ações reclamavam o não cumprimento de alforrias remuneradas ou discutiam o valor dos cativos, no inventário, para pagamento da mesma. . apesar das abundantes evidências da prática de escravidão ilegal, é o trânsito da escravidão à liberdade e não o contrário que deve ser enfatizado nesses processos. O peso dos laços familiares horizontais, como capital social básico, dentro do cativeiro, para que se forjassem condições para o acesso à justiça e para manutenção da memória familiar da escravidão ilegal, emerge com força da leitura destas ações. .O perfil destas ações continuou basicamente o mesmo – os autores continuavam majoritariamente crioulos. As ações individuais, que resultavam da iniciativa do próprio cativo, que fugiam ou acionavam suas relações pessoais com os homens livres para darem entrada na Ação de liberdade, continuaram concentradas nas vilas e cidades, principalmente na Corte. As ações familiares e agora também coletivas predominavam no mundo rural, revelando contextos distintos. Predominavam nas áreas rurais processos de manutenção da liberdade, majoritariamente de caráter familiar, o que significava um questionamento a posteriori da escravização ilegal e tentativa de resistir a ela. . a retórica jurídica nas ações de liberdade confundia-se com o costume e com as próprias relações de poder, nas primeiras décadas do século. Na fase de consolidação política do novo Estado, baseado num arcabouço jurídico liberal, a liberdade e a propriedade, entendidas como direitos naturais, torna-se-iam de forma definitiva o substrato teórico que embasaria, daí por diante, a resolução jurídica da questão. A lei escrita existia para para arbitrar relações costumeiras conflituosas. Na ausência de conflitos, não se cogitava da aplicação da lei. * Chalhoub colocou em relevo a importância das ações de liberdade para a compreensão do papel do Estado Imperial e dos próprios cativos no comprometimento da política de domínio que, até então, conferia legitimidade à dominação escravista. Nas ações de liberdade, advogados, juízes e curadores são os principais agentes a falarem no processo. Discutem as fronteiras legais entre escravidão e liberdade. A análise dessas falas ou desses discursos, desenham como que um roteiro dos conflitos e contradições em que se debateu o Estado Imperial em sua pretensão de gerar um direito positivo e constituir uma noção de direitos civis, reconhecidos a todos os homens livres, numa sociedade escravista. .As pretensões liberais da Constituição Imperial, garantindo o direito de propriedade e os direitos civis de todos os cidadãos, sem sequer mencionar a existência dos escravos, traria uma tendência progressiva a estabelecer, na forma de direito positivo, tanto os direitos de propriedade dos senhores de escravos como as condições legais de trânsito entre a escravidão e a liberdade. Seu primeiro efeito foi limitar teoricamente a área de interferência possível da Coroa na relação senhor-escravo, ao mesmo tempo em que estas possibilidades se ampliavam.


A escravidão foi um regime social que se coadunava bem com o espírito patrimonial e tradicional das Ordenações Filipinas e muito mal com uma tendência progressiva à positivação da lei. As questões jurídicas se tornaram cruciais para as elites imperiais, não apenas pelo conflito entre dois direitos agora entendidos como naturais, a propriedade e a liberdade. As tensões tradicionais entre senhores e seus escravos, que tendiam a se resolver no campo do costumeiro transbordavam de forma progressiva para a esfera do poder público, num contexto ideológico que não tornava mais possível a tradicional e limitada arbitragem em nome do bem comum. Os cativos, especialmente os nascidos no Brasil, possuíam um largo aprendizado de uma política de negociação, desenvolvida no campo dos costumes e do poder privado dos senhores. Se a possibilidade desta política representou para os senhores uma forma de produzir fidelidades e potencializar o nível de sua autoridade entre os cativos, para os escravos ela buscou primordialmente a miragem da alforria. Os níveis de frustação destas expectativas estiveram condicionados a um cálculo dos riscos de insubordinação que aquela frustação poderia gerar. Este aprendizado de negociação e pressão dos cativos, no contexto da segunda metade do oitocentos, começa a torna-se explosivo. O número de africanos diminui e o número de alforrias aumenta (a alforria devia ser percebida como uma concessão senhorial, que gerava uma dívida de gratidão a que o liberto sempre se manteria ligado, porém esta acepção não se fazia mais eficaz). . é dentro deste contexto que os discursos jurídicos sobre o trânsito possível entre escravidão e liberdade, os direitos civis dos libertos e a própria definição jurídica de escravo e seus possíveis direitos ganham uma dimensão maior. . nem todos os cativos, nos últimos anos da escravidão, foram negociados no tráfico interno, mas mesmo a relação dos senhores com as “crias de casa” tornavam-se perigosas em meados dos oitocentos. Não apenas a progressiva perda de legitimidade da instituição escravista é responsável pelo movimento grande de alforrias, como também a consciência culpada dos senhores pela percepção de que se tornava extremamente perigoso frustrar as expectativas do trânsito de liberdade. Para os escravos, pelo menos no meio rural, a família quase sempre foi pressuposto básico dessa possibilidade. Neste sentido, raramente o objetivo da alforria aparecia como um projeto puramente individual. Na verdade, o trânsito só se fazia completo quando todo o grupo perdesse os elos de ligação com o cativeiro.

TERCEIRA PARTE

CAPÍTULO X (O FANTASMA DA DESORDEM)

a lei que abolira definitivamente a escravidão no país teria sido feita, pelo menos na interpretação de alguns contemporâneos, para evitar a vitória do negro sobre o branco, do escravo sobre o senhor, ou seja, para libertar os brancos de perigosas perturbações e desordens. Nesta perspectiva, a libertação do senhor branco – e não do negro cativo – teria sido seu objetivo, pois a lei ter-se-ia limitado a reconhecer um fato consumado. . 1º paradoxo: cada vez que essa avaliação é reformulada, ela se insere num discurso mais abrangente, que tem como premissa o caráter traumático do fim da escravidão. Discute-se no fundo se a abolição do cativeiro, no tempo e na forma que se realizara, havia sido realmente inevitável. É peça central da argumentação favorável à lei uma hipótese contrafactual: apesar dos efeitos negativos, oriundos do despreparo da lavoura para substituir o escravo pelo trabalho livre, na ausência da medida legal, as consequências seriam, aí, sim, verdadeiramente devastadoras: a vitória do escravo sobre o senhor. Trata-se, portanto, de uma formulação de sentido francamente senhorial. . 2º paradoxo: na medida em que se combinam, nesta interpretação, um sentido de surpresa e imprevisibilidade com que o fim do cativeiro é encarado- o que produz seus efeitos traumáticos ao encontrar a antiga lavoura escravista ainda despreparada para a transformação- e a idéia do fato consumado e irreversível, que precisava ser controlado- o que, a princípio, aponta para uma lenta agonia da dominação escravista, que teria culminado na total perda de controle do elemento escravo. Portanto, para que a afirmação faça algum sentido, é preciso considerar-se possível que o fato consumado- a total falta de controle sobre os cativos, seja na esfera pública ou privada- se tenha apresentado aos ex-senhores como uma variável absolutamente surpreendente no desenrolar do processo. * a historiografia sobre a escravidão não tem levado muito a sério as interpretações da época, desqualificando-as como ideológicas e até mesmo cínicas. Para Hebe, sendo ideológicas ou cínicas, o fato é que ela se mostrou convincente e plausível para durar tanto tempo, e portanto, temos que leva a sério.


Hebe, no entanto faz uma pergunta: Como uma formulação que combina duas afirmações aparentemente contraditórias (a imprevisibilidade e o fato irreversível) pôde apresentar-se como uma versão convincente e difundida do fim da escravidão e de seus efeitos num mundo dela dependente?

. esta versão coloca o ex-escravo no centro do processo. É o êxodo das senzalas, extinguindo de fato a relação senhor-escravo e produzindo o fantasma da desordem e da indisciplina, que teria dado origem à medida legal na forma e no tempo em que ela ocorreu. Não se responsabiliza o movimento abolicionista pelas perigosas consequências deste fato, pois teria colaborado num sentido de orientar libertos e senhores para a solução do problema. A unidade alcançada em torno da questão abolicionista se realizava em nome da ordem e identificava e se opunha a controlar, com o reconhecimento legal da liberdade, o elemento básico da desordem e desorganização: o escravo transformado em homem livre. Sem dúvidas, a extinção do cativeiro pegou de surpresa os contemporâneos.


A historiografia sobre a crise da escravidão e a emergência do trabalho livre no Brasil, recebeu na década de 1980, uma expressiva concentração de estudos e pesquisas. Com um forte sentido revisionista, esta produção trouxe à tona, novas evidências que permitem avançar no sentido de se estabelecerem novos referenciais à discussão. Para Hebe, uma importante ampliação dos referenciais de análise se fez ao privilegiar a diferenciação dos agentes históricos e a multiplicidade de projetos e estratégias nas tentativas de controle político do processo de transformação do trabalho, repondo um certo sentido de surpresa e improvisação que acompanhou nas décadas de 1880 e 1890 o desenrolar do processo. *Os riscos de uma explicação romântica e unicausal que transforma os escravos nos únicos e principais agentes de sua própria libertação, precisam entretanto ser evitados. Obviamente eles não foram nem uma coisa e nem outra. Para Hebe, suas ações representam o vetor que produziu mais fortemente as dimensões de surpresa e imprevisibilidade de todo o processo. Outro risco a ser evitado é a excessiva ênfase na singularidade do caso paulista, que acabaria levando de roldão as demais áreas escravistas do sudeste, como explicação fácil para o seu paradoxo: seu aspecto traumático. O fato consumado teria ocorrido em São Paulo e o trauma, em Minas e no Rio. Com essa divisão geográfica o paradoxo estaria definitivamente resolvido. * A melhor forma de se avaliar a contribuição da historiografia recente sobre o processo abolicionista é tomá-la em conjunto e também, em relação com a produção que a antecedeu. Ampliando o arco de atores aptos a influenciar os rumos do processo, torna-se mais fácil compreender e mesmo acreditar que a quebra, em finais da década de 1880 do século passado, das balizas que até então norteavam o processo emancipacionista, tenha surpreendido a grande maioria dos contemporâneos.

CAPÍTULO XI (OS TERRÍVEIS PAULISTAS)

A província de São Paulo foi o palco inicial do encontro entre abolicionistas e antigos lavradores escravistas, no interesse comum de organizar o trabalho. Apesar disto, não se pode desprezar o impacto da experiência paulista como a principal fonte geradora de uma mudança de expectativa em relação ao desenlace do processo emancipacionista no país e de difusão de uma interpretação sobre o comportamento do escravo, transformado em homem livre, capaz de nortear as ações da antiga camada senhorial de outras regiões.


Em jornais interioranos, que influenciaram os fluminenses e mineiros, as concessões em massa de alforrias, em São Paulo, tornaram-se seu principal tema de divulgação e análise. O fantasma da desordem era também aqui esgrimido como argumento, só que agora em sentido inverso. A liberdade passava a ser condição para a ordem e a experiência paulista era acompanhada com entusiasmo ou interesse, na dependência do maior ou menor engajamento da publicação na causa abolicionista.


Foi diante da convicção de que a concessão de alforria incondicional mostrou-se uma estratégia fundamental para reverter o controle do processo em favor dos proprietários. A crise dizia respeito diretamente à força moral dos senhores sobre seus cativos. Acreditava-se que esta(alforria) ainda era capaz de produzir dividendos de gratidão por parte dos libertos, se acionada a tempo para a concessão de liberdade. A insubordinação das senzalas não se resumia, assim, às deserções em massa, estas simplesmente culminavam um processo anterior de desagregação da dominação escravista no interior das fazendas que, com a concessão de alforrias, procurava se evitar.

CAPÍTULO XII (A GENEROSIDADE DOS SENHORES)

A generosidade dos senhores respondeu sempre, de uma maneira direta, às desordens em suas próprias senzalas. São as alforrias de março e abril, antes que as que lhe antecederam que se costuma atribuir apenas ao despeito e ao cinismo. .Costumam apenas ser vistas como uma tentativa desesperada de alguns setores senhoriais de fazer seu um ato que o governo se preparava para realizar com data marcada (maio). A questão entretanto não é tão simples assim. Não foram poucos os emperrados que, mesmo com os seus escravos transformados totalmente em retirantes, se negaram a alforriá-los. Além disso, a simples disposição abolicionista do gabinete e da regente não eram por si só suficientes para extinguir a escravidão. Dependeriam sempre da aprovação do parlamento. O 10 de março não significou também qualquer novo alento de radicalização ao movimento abolicionista, no sentido de uma maior atuação junto às senzalas. Pelo contrário, marca o momento de sua maior aproximação com os proprietários de cativos, a estimular a concessão de alforrias como caminho para reconstrução da ordem e a pedir calma aos libertos. >Hebe procura argumentar que a preponderância do ponto de vista paulista sobre a questão servil no gabinete, se influenciou nas concessões de alforrias de março e abril, o fez principalmente ao dissipar as últimas esperanças de combater pela força a indisciplina nas senzalas. Entre os cativos, esta expectativa ampliou o alcance e a profundidade da insubordinação. Já para os senhores, estas alforrias se fizeram como uma resposta à crescente desagregação de seu poder. O grande desafio dos senhores era, portanto, transitar para a liberdade, sem que esta ordem se visse abalada. Surpreendeu aos senhores que os cativos pudessem transformar uma simples troca de gabinete e um movimento de opinião num fato consumado de proporções muito maiores. Ao forçarem a nova situação política que lhes era favorável, os escravos provocaram a contra-estratégia dos senhores e sua aproximação com o movimento abolicionista- a concessão de alforrias como forma de preservar sua autoridade moral e garantir pelo menos de imediato seu suprimento de trabalho.


A nível político, foi a vaga concessão de alforrias que minou a força de resistência política dos escravocratas, levando a divisão dos interesses senhoriais a penetrar no reduto dos ultraconservadores. Foi esta vaga que também estreitou o campo para uma radicalização democrática do movimento abolicionista, no sentido de colocar em causa a questão da cidadania negra. * a onda de concessões de alforria de março e abril representou principalmente uma última e desesperada estratégia de promover a transição para a liberdade, sob controle dos antigos senhores, buscando reafirmar a prerrogativa senhorial da concessão da liberdade e os corolários de dependência e gratidão que tradicionalmente implicavam. Significou assim, uma tentativa de retomar o controle do processo, a partir de um determinado saber senhorial sobre o liberto, em grande parte produzido a partir de uma determinada versão da experiência paulista e da própria confiança senhorial sobre sua ascendência moral sobre os cativos, procurando que estes percebessem a liberdade como uma conquista ou como uma concessão de “sá Isabel”.

CAPÍTULO XIII (EXPECTATIVAS SOBRE A LIBERDADE)

A libertação estava feita de fato, tratava-se agora de legalizá-la e de organizar com urgência o trabalho livre. Para tanto, conjugam-se os esforços das elites locais, reunindo, para este fim, antigos adversários. . no Congresso Agrícola, foram formadas comissões para legalizar, mediante concessão de carta de alforria sem condições e baixa na matrícula de escravos, a situação dos cativos, muitos deles já transformados em retirantes. Este primeiro congresso discute o estabelecimento de um padrão comum que garantisse condições de fixação ou colocação estável dos libertos compreendendo serviços, salários e obrigações pessoais. Líderes abolicionistas e ex-senhores estavam de acordo em que estes deviam agir solidariamente, no sentido de evitar que concorressem entre si pela força de trabalho. As lideranças abolicionistas consideravam, porém, que a simples concessão de alforria não seria suficiente para impedir a livre movimentação dos libertos. Para eles, somente o pagamento de salários garantiria a colheita de 1888.


Movendo-se sob a contradição de manter a solidariedade do antigo grupo senhorial, como forma de manter o controle econômico e moral da transformação do trabalho, e a acirrada competição por sobreviver à crise econômica que se delineava, a antiga lavoura escravista procura inicialmente manter-se na ofensiva, inclusive quando concede, solidariamente, como em Campos e São Fidélis, ou competitivamente, como em Cantagalo, alforria incondicional. Os detalhados regulamentos produzidos sob influências tão diversas, dão bem a medida do controle sob a organização e disciplina do trabalho, nas fazendas que se esperava manter sob as novas relações. Apesar de uma consciência generalizada de que deviam agir uniformemente para organizar as relações de trabalho, de fato o aliciamento de trabalhadores prevaleceu, reforçando a tendência aos deslocamentos constantes dos libertos. Além disto a atuação das forças policiais careceu de uniformidade, oscilando conforme o posicionamento político de delegados. Produziam-se assim, as primeiras frustrações senhoriais sobre os efeitos disciplinadores da liberdade. 

CAPITULO XIV (A FRUSTAÇÃO SENHORIAL)

*Resumo da primeira parte: através do emaranhado de versões das folhas interioranas para os acontecimentos que imediatamente antecederam o fim do cativeiro, tentou demonstrar a dimensão de imprevisibilidade e aceleração da conjuntura política favorável à liberdade, produzida pela quebra da disciplina nas senzalas e sua capacidade de desmanchar o poder senhorial. Procurou mostrar também que esta dimensão de imprevisibilidade produziu um significativo encontro entre antigos interesses escravista e abolicionismo, consubstanciado nas ondas de concessão de alforrias e nas reuniões de lavradores, que procuravam organizar o trabalho livre. Deste modo, o caráter surpreendente da situação vivida não foi capaz de imobilizar os ex-senhores, que nutriam expectativas crescentes de retomar o controle da situação, com a concessão de alforrias e/ou com atitudes corporativas em relação ao mercado de trabalho. Complementarmente, eram muito grandes as expectativas de que, juntamente com a liberdade, se estabelecessem leis que regulassem o trabalho dos libertos e incrementassem a entrada de imigrantes. O movimento abolicionista e os senhores recém-convertidos à causa da liberdade tinham, além disto, a partir da experiência paulista, tentado difundir todo um saber próprio sobre o comportamento do liberto, que julgavam poder acionar para disciplinar sua movimentação. Contavam com a gratidão, no caso dos alforriados, e com a retomada do consenso, no mundo dos brancos, para restabelecer sua força moral; com o apelo dos laços comunitários, estabelecidos ainda sob o cativeiro, para retê-los, senão nas fazendas, pelo menos nas proximidades de onde serviam como escravos, e com as dificuldades na luta pela sobrevivência, para devolvê-los ao eito, sem maiores perturbações na vida rural. O sentido traumático do treze de maio se produz não pela simples aprovação da lei, previamente anunciada, mas pela frustração daquelas expectativas que, em pouco tempo, num sentido inverso, aproximou antigos abolicionistas de emperrados escravocratas.


Para muitos dos setores conservadores favoráveis à lei, o fantasma da desordem só seria plenamente afastado anulando-se a tendência a que os ex-senhores competissem entre si pela mão-de-obra liberta. Tendência esta que acabava por anular os trunfos de que dispunham para administrar solidariamente as novas relações de trabalho.


A movimentação autônoma dos libertos era uma variável de difícil assimilação pelos antigos produtores escravistas. Suas expectativas e valores, mesmo que atuantes na experiência prática das relações escravistas, nunca haviam influenciado tão fortemente as condições de organização do trabalho e da produção. As relações de estratificação social entre os homens livres e as práticas costumeiras de acesso à terra desmoronavam frente à nova situação.


Frustradas as expectativas gestadas nas reuniões de lavradores, nos rasgos de generosidade, na solidez patriarcal e nas ilusões imigrantistas, restou a percepção de que a reconstrução da ordem social e econômica, a nível rural, implicaria em acionar novos recursos de poder e na incorporação de parte dos valores culturais e das expectativas de exercício da liberdade dos recém-libertos e da população livre preexistente, não sem resistências e perdas por parte das antigas elites escravistas.


O universo comum que, de certa forma, unificava os códigos culturais destes grupos esteve até 1888 fortemente ancorado na realidade escravista. Sem ela, todos os antigos códigos e práticas costumeiras entravam em crise. Uma nova elaboração desses códigos era precondição para qualquer situação de estabilidade, num mundo rural onde as regras do mercado se confundiam com desordem e anarquia. A compreensão plena do processo implica, portanto, em recuperar este embate, onde as expectativas em relação à liberdade, alimentadas por libertos e nascidos livres, construídas ainda sob vigência da escravidão, são referenciais primordiais.

QUARTA PARTE

CAPÍTULO XV (NÓS TUDO HOJE É CIDADÃO)

Com o fim do cativeiro, as categorias e identidades sócio-culturais, que construíam a ordem no mundo rural do sudeste, subitamente deixam de fazer sentido. Senhores, escravos e homens nascidos ou tornados livres, historicamente deixam de existir. Novas identidades sociais precisariam ser construídas. Neste contexto, os significados da liberdade tornaram-se campo de luta privilegiado, a partir do qual se iriam reestruturar as novas relações de poder. . os ex-senhores do sudeste, convertidos ou não ao abolicionismo, defenderam como primeiro projeto, em suas propostas políticas e em sua ação privada, uma tutela direta sobre a liberdade do liberto. Se não se obrigava ao trabalho, reprimia a vadiagem. Naquele momento, entretanto, os vadios confundiam-se com os libertos e sua movimentação. Neste contexto, a repressão à vadiagem facilmente se transfigurava em coerção à liberdade dos cativos emancipados. . por toda a política emancipacionista imperial, à exceção da lei de maio de 1888, desde os africanos livres pela extinção do tráfico e 1831 até os ingênuos, 1871, idosos, 1885, e manumitidos, por alforria ou pelo fundo de emancipação, manteve-se a tutela estatal ou privada sobre os libertos, privando-os da cidadania brasileira, conforme era reconhecida aos homens nascidos livres. O que significava entretanto esta cidadania? Quais os significados da liberdade? Politicamente, ela era uma farsa, mesmo para os cidadãos ativos. Em termos civis, garantia as liberdades clássicas – de ir e vir, de propriedade etc- bem como a liberdade de opinião e a integridade física, quando proibia a tortura ou o castigo infamante. . qual é o significado real destas garantias para os cidadãos passivos? Os pilares básicos da liberdade- mobilidade, família e propriedade- possuíam significações profundas tanto no quadro tradicional, hierárquico e integrativo, que a sociedade rural apresentava desde o período colonial, como no quadro das prerrogativas da liberdade civil, pensada nos moldes liberais. Isto porque estes direitos se construíram em oposição à experiência histórica da servidão. Neste contexto, o direito de ir e vir era exercido em busca de laços, a família era constituída face à Igreja e não ao Estado, que respondia também pela separação de bens, em caso de divórcio, e a propriedade era entendida em termos parcelários e se estendia até os escravos. Esta experiência de liberdade, entretanto, ao ser transformada no Império, em direitos civis, teve seus sentidos redefinidos. Especialmente a idéia de uma igualdade formal na liberdade foi progressivamente reforçada, em relação às concepções hierárquicas dos indivíduos nascidos livres. > durante o Império tendeu-se a preservar o sentido hierárquico das relações pessoais, transformando-as em fiadoras da igualdade, formalmente reconhecidas pelo Estado Imperial, como comprovam as alianças tecidas em torno do número crescente de ações de liberdade ou o desaparecimento da cor como indicativo de posição social nos processos criminais. > referente à propriedade, a legislação imperial tendeu a deslegitimar as concepções parcelárias ainda vigentes, reforçando a dependência pessoal para os que não reuniam condições para aquisição legal das terras. Desde 1850, a tendência da legislação imperial foi transformar o costume em direito, mesmo que mantendo uma condição civil especial para o liberto. > foi o Estado Imperial que garantiu o fim do tráfico; que reconheceu para os cativos o direito à família, proibindo as separações de casais e seus filhos, que transformou em direito a prática do pecúlio e o acesso à alforria, que proibiu o açoite, em 1886. O que esteve em discussão, desde pelo menos 1850, foi a possibilidade de se atribuírem direitos civis aos escravos, bem como cidadania aos libertos, nos quadros da sociedade imperial. Foi, portanto, a cidadania dos libertos que esteve primeiramente em jogo após maio de 1888. >a igualdade entre homens livres, era, então, percebida fundamentalmente pela perda da marca da escravidão. Se até a primeira metade do século XIX, os homens se dividiam em brancos e pardos, a vivência da liberdade, na segunda metade já não incorporava a diferenciação racial ao controle social dos homens livres pobres. Perder o estigma do cativeiro era deixar de ser reconhecido não só como liberto mas como preto ou negro, até então sinônimos de escravo ou ex-escravo e, portanto, referente a seu caráter de não-cidadãos.


Nos últimos meses da monarquia e ainda na primeira década republicana, os ex-senhores continuaram a tentar acionar sua ascendência sobre os homens nascidos livres, seus dependentes, bem como sua influência sobre as autoridades locais, para forçar os libertos a tomar contrato de trabalho.


Costuma-se alegar que aos libertos nada foi concedido além da liberdade. Nem terras, nem instrução, nem qualquer reparação ou compensação pelos anos de cativeiro. Foram entregues à própria sorte. Foi a tentativa, muitas vezes violenta, de se forçar os libertos a se manterem não como negros escravos, mas como negros libertos, de mantê-los numa condição civil de fato, diferenciada dos demais homens livres, que os libertos tiveram imediatamente que enfrentar, na sua vivência cotidiana, após a aprovação da lei. * Negro aparece como sinônimo de escravo ou ex-escravo e cidadão como livre.

CAPÍTULO XVI, XVII E XVIII (NEGRO NÃO HÁ MAIS NÃO)

Antes que um processo de branqueamento, parece delinear-se um processo de apagamento da memória do cativeiro, no registro da cor, tornando negros os filhos dos nascidos livres que não trouxeram traços evidentes de miscigenação. . a designação de pardo parece representar a perda do estigma de cativeiro. . as crianças registradas como negras foram aquelas cujas famílias ainda eram prioritariamente identificadas com um passado cativo.


Se os registros de óbito confirmam que a maioria dos negros-libertos- encontrava-se residindo nas fazendas cafeeiras da região, os registros de nascimento reiteram as relações estabelecidas entre família nuclear e acesso à parceria, que reproduzem as antigas correlações entre laços de família e acesso à terra, que caracterizavam a experiência de liberdade no período anterior. Parece indicar ainda que os libertos, ao realizarem este percurso e ao realizarem uniões familiares com os nascidos livres (uniões entre brancos e mestiços ou entre negros e mestiços), tendiam também a perder a marca do cativeiro.


A complexidade e antiguidade dos laços familiares herdados do cativeiro influíram diretamente nas decisões de migração ou permanência dos libertos. Apesar das repetidas generalizações sobre a mobilidade do liberto, a importância social dos laços familiares e pessoais para a inserção social no mundo rural do sudeste, em finais do século XIX, fez com que, como previram em parte os ex-senhores, os que estavam aptos a acionar este tipo de relações privilegiassem estratégias de permanência, sem que estas possuíssem os sentidos que os antigos senhores esperavam.


As repetidas generalizações de que os libertos teriam sido alijados das ou se recusado a permanecer nas fazendas mais produtivas não parecem confirma-se. Na última década do século passado as condições de atração dos colonos nascidos livres para o trabalho na lavoura cafeeira ou canavieira ainda eram bastante precárias e o trabalhador imigrante tornava-se uma esperança cada vez mais distante, tornando-se o liberto – negro- sua principal força de trabalho. Desta forma, era a dependência do liberto, transformado em homem livre, que causava a escassez de braços e não a sua recusa ao trabalho nas fazendas.


Tendo em vista o impacto do tráfico interno nas últimas décadas da escravidão, obviamente todos os cativos não possuíam o mesmo grau de integração familiar e comunitária no lugar onde foram libertos da condição cativa. Ora, mobilidade e autonomia consistiam nos dois mais fortes signos a identificar a experiência de liberdade, vigente ainda sob a escravidão. Para os libertos, como para o conjunto dos homens livres despossuídos, antes de 1888, a opção pela mobilidade frequentemente foi uma ponte para uma situação de autonomia, baseada no trabalho familiar, quase sempre mediada por relações pessoais e familiares, preexistentes ou em elaboração.

CAPÍTULO XIX (A OUTRA HISTÓRIA)

nos depoimentos de seu Paulo e d. Ana Cândida, suas representações sobre identidade e relações interétnicas, a nível horizontal, são instigantes, quando se vem refletindo sobre o silêncio da cor. O que mais surpreende nos depoimentos de ambos, foi a recusa em operar com critérios raciais. . sua apropriação do silêncio sobre a cor se fazia a nível genérico e não a nível individual, ao contrário do que se espera ocorrer dentro dos parâmetros de uma ideologia de branqueamento. Nela, através do silêncio, os indivíduos embranquecem, mas os pretos, os brancos e os pardos, enquanto categorias gerais, permanecem para designar lugares sociais. . a referência à condição de liberto ou a menção da cor continuou a ser feita como indicador de suspeição ou desqualificação. > a república , ao queimar as matrículas de escravos e ao promulgar uma constituição de cunho liberal, de certo modo contribuiu para que o processo de assimilação entre libertos e nascidos livres se efetivasse. A dramática desarticulação da antiga identidade senhorial, o estreitamento do espaço costumeiro na vivência dos homens pobres, nascidos livres, e uma ética de trabalho que os aproximava dos libertos acabaram por levar nascidos livres e libertos às migrações sazonais, à parceria e ao sonho da pequena propriedade. A conclusão de um processo de positivação das leis realizada pela República, retiraria os limites que a tradição e o costume até então estabeleciam ao poder privado das elites agrárias, em relação ao acesso à terra das populações rurais, acabando por reverter os termos desfavoráveis aos proprietários em que as variáveis de mercado atuaram, na primeira década republicana.


Até muito tardiamente liberdade e cativeiro continuaram a ser categorias chave a definir a ética do trabalho predominante no meio rural. As matrizes de repressão e legitimidade, os limites de acomodação e resistência à exploração e à dominação de classe continuaram respaldadas por uma economia moral, que valorizava mobilidade e autonomia no controle da produção e do tempo de trabalho, bem como reconhecia legitimamente os laços comunitários e familiares como instância integradora numa sociedade hierárquica. Qualquer estratégia de dominação que não levasse em conta estas variáveis estava fadada ao fracasso, não apenas em função da força destas concepções de liberdade, mas também como resultado da atuação dos libertos, para que se mantivessem efetivas, após maio de 1888.

CONCLUSÃO

Hebe iniciou sua pesquisa tentando discutir a inserção dos cativos no processo de destruição da escravidão e sua inserção social após o fim do cativeiro. Não pensava, no inicio, na questão da ideologia racial, mas ao final de sua pesquisa, foi o seu caráter central na atuação dos libertos bem como as formas desta atuação, com a forma específica que as relações interétnicas e a discriminação racial assumiram em nossa sociedade, que mais a impressionaram. . qualquer noção de raça é antes de tudo uma construção ideológica. > critica Gilberto Freire e Florestan Fernandes: eles mesmo que a tomaram mais como etnicidade do que como fato biológico, recuperando-a para criticar a discriminação e o racismo, informam momentos importantes desse contínuo processo de reelaboração. Em ambos os autores, toma-se como matriz uma associação entre negritude e escravidão, assim, acaba por manter os descendentes de africanos como libertos indo contra os cativos que tentaram apagar a força discriminadora desta marca. No Brasil, qualquer correlação direta entre negritude e cativeiro negligencia o peso crescente dos descendentes de africanos no mundo dos homens livres. Mesmo no interior da experiência do cativeiro, a possibilidade da família, do pecúlio, das relações comunitárias, da esperança da alforria, se fez enquanto aproximação com a liberdade. . a ideologia racial no Brasil pós-emancipação continuou sendo elaborada a partir daquela inversão de sentidos das demandas dos libertos, operada ainda na aurora republicana. O silêncio sobre a cor e a redução desta a uma categoria meramente descritiva perdem, nesta inversão, seu sentido possível de crítica radical do próprio conceito de raça, quando se conserva o sentido pejorativo da palavra preto -liberto- e a identidade essencialmente branca da elite. A ideologia do branqueamento de Florestan Fernandes, não se construiu entretanto sobre a tábula rasa de negros subsocializados pela experiência do cativeiro, mas sobre uma experiência de luta pela cidadania, nos quadros de uma sociedade que, mais que hierarquizada, definia-se a partir do mais rigoroso apartheid social.


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