quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Joana d'Arc ou Joanas d"Arc?

Joana d'Arc é, e se não é deve estar, entre os personagens femininos mais conhecidos da história. Atualmente, segundo Amaral, contam-se, espalhadas pelo mundo, 20 mil estátuas públicas, 800 biografias históricas, 52 filmes, centenas de peças de teatro, romances, musica etc, e daí, podemos entender o quanto Joana é conhecida e propagada para além da França.
Algumas pesquisas, como as de Winock (WINOCK apud AMARAL, p. 33), tendem a afirmar que do século XVI ao século XVIII (ele denomina esse período de século de inadequação ou esquecimento) a imagem de Joana foi esquecida e só seria retomada no século XIX e XX (Winock denomina este outro período como século de rememoração-ativa) após a Revolução Francesa. Estas idéias, normalmente tem sido alvo de críticas, pois segundo pesquisas de Olivier Bouzy (BOUZY apud AMARAL, p. 33), há um grande interesse desses séculos, considerados esquecedores, por Joana, fazendo poemas, romances, músicas etc. Para Bouzy, o “esquecimento” de Joana viria de uma escolha dos autores, que ao desejarem uma história que não tivesse uma donzela, não queriam participar de tal interpretação, vigente ao longo desses séculos. Enfim, o que Bouzy afirma, é que o que foi deixado de lado não foi o personagem Joana, mas a imagem que estes séculos veicularam nela.
Segundo Amaral (AMARAL, p. 56), os revolucionários não podiam romper com o passado para não perderem os referenciais e para isso resolveram resignificá-lo, assim como dar um novo significado a alguns personagens de sua história. É dessa forma que Joana deixa de ser renegada para ser valorizada e passa a ser relacionada com os ideais revolucionários, tornando-se assim uma heroína1 nacional. Entretanto, como Charmettes (CHARMETTES apud AMARAL p.68) afirma, Joana não era uma heroína comum, ela tinha uma certa superioridade sobre os demais heróis, pelo fato de ser uma heroína histórica e não literária, isto é, seus feitos são verdadeiros e verificáveis numa vasta documentação (biografias, processos etc) e por ser uma oprimida já que era uma mulher e naquela época elas eram submissas, portanto estavam ás margens da sociedade. Mas mesmo sendo diferente nesses aspectos, ela mantinha algumas características típicas ligadas aos heroísmo, como piedade, simplicidade, honestidade, castidade, humildade (moral e não social), justiça, prudência e coragem.
Winock e Krumeich (WINOCK, KRUMEICH apud AMARAL p.17), afirmam que o grande responsável por transformar a imagem de Joana d'Arc fazendo dela um dogma do heroísmo e do bom senso popular, além de ser a propulsora do sentimento nacional, foi Michelet que à considerava muito importante pois depois da Guerra dos Cem anos, a França começou a caminhar para ser uma nação, e ela, era a representante do povo, que por sua vez era a nação.
A revolução francesa passa a ser um divisor de águas: existe uma Joana antes e outra depois da Revolução. A imagem de Joana d'Arc, desde a idade média, era sempre associada a uma visão celeste, pela questão de ouvir anjos, e também associada à imagem de guerreira, por ter libertado a França da Inglaterra. E no século fim do século XVII e início do XIX, torna-se uma heroína, quando os revolucionários franceses a tomam como propulsora do nacionalismo francês, ao aproximar a sua imagem ao terceiro Estado (povo) como uma memória nacional a partir dos primórdios do nascimento da liberdade. Enfim, foi no século XIX que são lançadas as bases para uma nova interpretação da história de Joana que deixa de ser lembrada como defensora da monarquia e começa a ser identificada como uma representante do povo que irá lutar contra a tirania absolutista, portanto, a favor da liberdade. Essa idéia, é perfeitamente aceitável para Michelet (MICHELET apud AMARAL, p. 106-107), pois como a monarquia era o regime dominante no tempo que Joana viveu e ela lutou para mantê-lo e ainda manter a mesma dominação dinástica, por entender como uma luta pela liberdade dos franceses diante dos ingleses, seria justo transpor esse ideal de luta para a revolução. Portanto, para Michelet, Joana foi mais do que a salvadora da França, foi uma mártir supliciada em nome da liberdade, foi uma França escolhendo seu próprio destino.
No século XIX, como afirma Amaral (AMARAL, p.81-83), o termo herói ganha novos significados. Antes ele era usado para designar os semideuses da Antiguidade, e a partir deste século, passa a denominar somente o personagem principal de uma narrativa, que normalmente é aquela pessoa que encarna uma vontade coletiva em um momento obscuro, renunciando a si mesmo para lutar contra a individualidade. Entretanto, vários elementos atribuídos aos heróis da Antiguidade são associados a ela, como o rápido aprendizado do manuseamento de armas, a existência de objetos miraculosos (espada e estandarte), existência de profecias e a presença da moderatio, cuja função era a de zelar pela salvação do exército ao optar por uma prudência defensiva, ou seja, tentar negociar com os oponentes.
Retira-se também o foco do miraculoso e foca nas questões naturais para explicar os fatos, pois se não a heroína perderia o seu sentido. Ela tinha que ser humana, para ser real. “A ela não se atribuia nenhum poder miraculoso, mas o seu hábito de começar o seu discurso pelas palavras em nome de Deus ” o que faziam vê-la como uma santa. Não há como falar de Joana d”Arc, sem deixarmos de lembrar do caráter religioso que a impulsionava, porém o poder dela, segundo Amaral (AMARAL, p.97), vinha da união de sua virtude (entusiasmo), de sua superstição universal e da impaciência do povo em esperar por socorro. Enfim, o que ela quer dizer, é que Joana é heroína não por sua santidade, mas por ter reconhecido o rei como legítimo governante e ter feito de tudo para lutar por esse ideal. Acaba por assim, fazer uma Joana dessacralizada, que movida pelo entusiasmo em cumprir a sua missão e não pela ajuda celeste (sobrenatural), torna-se explicável e apreensível sob o ponto de vista histórico e não mais do religioso.
Amaral (AMARAL, p.198-202) afirma que os modernos interpretaram ser necessário uma separação entre Estado e religião, por isso a história de Joana parece ser tão complexa. Quando eles privilegiam o entusiasmo como força motriz da heroína, da-se à ela um aspecto laico. Ainda segundo a autora, até mesmo o processo de canonização é fruto dessa interpretação que projetava uma separação entre as esferas sociais (religiosa, política, jurídica e econômica) ao propor a separação do que é santo e do que é político, pois a canonização só pode ser concluída quando se associou a causa e a vida de Joana num propósito unicamente divino.
Em suma, a imagem que os pensadores faziam de Joana, comumente, remetia a uma santa e ou guerreira, levando-se mais em conta os aspectos sobrenaturais para explicar os seus feitos, como as vozes que ela ouvia. Porém, com a modernidade, se viu necessário separar a esfera religiosa e a esfera política possibilitando assim novas interpretações sobre este personagem, e tais pensadores, tendem a associar os seus feitos a uma noção de entusiasmo, para lhe dar um caráter natural e humano, e fazê-la uma heroína laica e racional. Segundo Amaral (AMARAL, p.201), com a valorização de seus aspectos históricos, as suas particularidades são valorizadas, e passaremos a ter várias “Joanas”, como “a Joana laica, a santa, a celta, a protestante, a feminista, a esquerdista, a de extrema direita, a druída, etc.”



1 Herói, para Campbell, é a figura com nascimento humilde, mas milagroso, que ao passar por grandes desafios demonstra provas de uma força sobre-humana. Após uma batalha de vida ou morte, sempre sai triunfante contra as forças do mal. O herói, para ele, seria um homem ou uma mulher que conseguiu através de muito esforço, vencer suas limitações históricas pessoais e locais. É como se o herói comportasse dentro de si mesmo um guerreiro e um líder que nasceu para ser útil à sociedade. Enfim, Campbell apresenta o herói como sendo um ser humano que vai se construindo e se transformando de acordo com sua experiência, que ao fim será caracterizado como um ser heroico.

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