quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Fichamento do livro Totem e Tabu, Sigmund Freud

PREFÁCIO (p.6)

Os 2 temas principais que dão título ao livro, o totem e o tabu, não são tratados da mesma forma. Tal diferença liga-se ao fato de que o tabu ainda subsiste entre nós; ele não é outra coisa, em sua natureza psicológica, senão o imperativo categórico de Kant, que tende a agir coercitivamente e rejeita qualquer motivação consciente. Já o totemismo é uma instituição social-religiosa alheia à sensibilidade atual, realmente há muito abandonada e substituída por novas formas, que deixou traços mínimos na religião, nos usos e costumes dos povos civilizados de hoje, e que teve de sofrer grandes transformações mesmo nos povos que ainda a mantêm.

Capítulo I (p.7)

Se conhece o homem pré histórico pelos seus vestígios e impressões. Ele é, em certo sentido, nosso contemporaneo. Assim, se considera os chamados de selvagens ou semisselvagens se nas suas vidas pudermos reconhecer um estágio anterior e conservado de nossa própria evolução. Se a premissa for correta, uma psicologia dos povos da natureza, da etnografia, e a psicologia dos neuróticos, da psicanálise, mostrará várias coincidências.
Para fazer a comparação, escolheu as tribos que foram descritas, pelos etnólogos, como as mais atrasadas e miseráveis, as dos aborígines do mais novo continente, a Austrália. Estes, são vistos como uma raça particular, sem parentesco com os seus vizinhos mais próximos: melanésios, polinésios e malaios.

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Eles não constroem casas, não trabalham o solo, não criam animais domésticos, e não conhecem a arte cerâmica. Desconhecem reis ou chefes. Traços de religião, na forma de adoração de seres superiores, dificilmente lhes podem ser atribuídos. As tribos do interior do continente parecem ser mais primitivas do que as da costa. Eles não obseram uma moral como a nossa em sua vida sexual, que lhes tenham imposto um alto grau de limitação. No entanto, estabeleceram por meta o impedimento do incesto.
No lugar das instituições sociais religiosas, eles tem o sistema do TOTEMISMO. Totem, via d regra é um animal e mais raramente uma planta ou força da natureza, que tem uma relação especial com todo o clã. O totem é o ancestral comum do clã, seu espírito protetor e auxiliar, que lhe envia oráculos. Os membros do clã, por sua vez, acham-se na obrigação, sagrada e portadora de punição automática, de não matar seu totem e abster-se de sua carne. O carater do totem não é inerente a um só animal ou ser individual, mas a todos da espécie.

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O totem é transmitido hereditariamente, por linha materna ou paterna. A relação com o totem é o fundamento de todas as obrigações sociais para um australiano; ela se sobrepõe ao fato de pertencer a uma tribo e ao parentesco sanguíneo.

*A palavra totem foi tomada dos peles-vermelhas noste-americanos pelo inglês J. Long, na forma totam. O mérito de perceber a importância do totemismo para a pré-história da humanidade petence ao escocês J. Mclennan. Instituições totêmicas foram ou são observadas também entre os indios da américa do norte, entre os povos da oceania, na índia oriental e em boa parte da áfrica. Mas alguns outros traços levam a concluir que o totemismo também já existiu nos primeiros povos arianos e semitas da europa e da ásia.
** Pretende-se fazer do problema do totemismo o objeto de um estudo especial, em que buscará solucioná-lo com a ajuda da psicanálise. Não apenas a teoria do totemismo é controversa, também os seus fatos mal podem ser enunciados em termos grais. Quase não há afirmação a que não se tenha de acrescentar exceções ou contradições. Mas não podemos esquecer que também os povos primitivos são antigos, no qual seu elemento original sofreu bastante desenvolvimento e deformação. Portanto, a dificuldade está na questão de decidir o que pode ser visto como retrato do passado significativo o como deformação secundária do mesmo.

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Em quase toda parte em que vigora o totem há a lei de que membros do mesmo totem não podem ter relações sexuais entre si, ou seja, também não podem se casar. É  a instituição da exogamia, ligada ao totem. Tal proibição é bastante singular. Não se sabe como ela foi incluída, por isso não causa surpresa quando pesquisadores supõem que originalmente a exogamia nada tinha haver com o totemismo e lhe foi agregada depois.

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A aplicação do ponto de vista psicanalítico pode levar a uma nova compreensão dos fatos da psicologia dos povos. O que podemos acrescentar é que ele constitui um traço peculiarmente infantil e uma notável concordância com a vida psiquica dos neuróticos. A psicanálise nos ensinou que a 1ª escolha sexual do menino é incestuosa à mãe e à irmã, e também nos deu a conhecer as vias pelas quais ele se liberta. Já o neurótico representa um quê de infantilismo psíquico por não conseguir se libertar ou reverter isto.

Capítulo II

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Tabu é uma palavra polinésia cuja tradução é uma dificuldade por não possuirmos o conceito por ela designado. O significado de tabu se divide em duas direções opostas. Po um lado quer dizer santo, consagrado; por outro, inquietante, perigoso, proibido, impuro. O contrário de tabu, em polinésio, é noa, ou seja, habitual, acessível a todos. Assim, o tabu está ligado à idéia de algo reservado, exprimi-se em proibições e restrições, essencialmente. A nossa expressão temor sagrado corresponde ao sentido de tabu. As restrições do tabu são algo diverso das proibições religiosas ou morais por não se incluírem num sistema que dá por necessárias as privações e fundamenta esta necessidade.

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As proibições do tabu prescindem de qualquer fundamentação; tem origem desconhecida que parecem evidentes para aqueles sob o seu domínio.
Wundt afirma que o tabu é o mais antigo código de leis não escritas da humanidade. Considera-se que o tabu é mais antigo que os deuses.
Como Freud precisa de uma descrição imparcial do tabu, a fim de submetê-lo ao exame da psicanálise, transcreve passagens do verbete de N. Thomas: o tabu abrange apenas: o carater sagrado ou impuro de pessoas ou coisas; o tipo de proibição que resulta desse caráter e a santidade ou impureza que resulta de uma violação da proibição. Num sentido mais amplo, várias classes de tabu podem ser diferenciadas: tabu natural ou direto, resultado do mana, poder misterioso, inerente a uma coisa ou pessoa; comunicado ou indireto, igualmente resultado do mana mas adquirido ou imposto por alguém; intermediário, em que ambos os fatores estão presentes. O termo é também aplicado a outras restrições rituais, mas não se deve chamar de tabu aquilo que é melhor caracterizado como interdição religiosa. Os objetos de tabu são muitos: tabus direto visam a proteção de pessoas importantes contra qualquer dano, a salvaguarda dos fracos em relação ao poderoso mana, influência mágica, dos sacerdotes e chefes, a prevenção contra os

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perigos ligados à manipulação ou contrato com cadáveres, ingestão de certos alimentos, etc, a garantia contra a interferência em atos vitais importantes, a proteção de seres humanos contra a ira ou o poder de espíritos e deuses e a proteção de crianças ainda não nascidas e de crianças pequenas.

O castigo para a violação de um tabu era originalmente deixado para uma instância interior, de efeito automático. O tabu ferido vinga a si mesmo. Só mais tarde com o surgimento de ideias de deuses e espiritos que esperavasse uma punição do poder divino. Em outros casos, a própria sociedade assumiu a punição dos infratores.
A fonte do tabu é atribuída a um poder mágico especial que é inerente às pessoas e espirítos e pode ser transmitido por eles através de objetos inanimados.

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A transmissibilidade de um tabu é a característica que deu ensejo a que se procurasse eliminá-lo com cerimônias de expiação.
Há tabus permanentes e temporários. Sacerdotes e chefes são dos primeiros. Tabus temporários ligam-se a certos estados, como a menstruação e o parto, aos guerreiros antes e depois das expedições. Um tabu geral pode ser instituído sobre uma região inteira e durar anos e anos.
freud garante-nos que o nosso pensamento sobre o assunto está confuso pela falta de mais informações e de nexo entre o tabu e a superstição. Porém, sabe que uma apresentação mais detalhada tivesse ainda um efeito msais confuso.

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Trata-se de uma série de restrições a que se submetem esses povos e que não sabemos por quê e nem eles por cumprirem algo óbvio estando convencidos de que com uma transgressão seriam punidos automaticamente.
A maioria das proibições diz respeito à capacidade de fruição, à liberdade de movimento e comunicação. Em muitos casos parecem dotadas de sentido, em outros são incompreensíveis. O mais singular é que quem viola uma proibição adquire ele mesmo a característica do que é proibido.
Tabu é igualmente tudo, tanto as pessoas como os lugares, objetos e estados passageiros, que são depositários ou fonte dessa misteriosa característica. Também se chama tabu a proibição que deriva dessa característica; é denominado tabu, enfim, conforme seu sentido literal, algo simultaneamente sagrado, acima do habitual, e perigoso, impuro, inquietante.

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Na palavra tabu e no sistema que ela designa se exprime algo da vida psíquica, algo cujo entendimento aina não está ao nosso alcance.Mas por que devemos voltar nosso interesse para o enigma do tabu? Porque todo problema psicológico é digno de uma tentativa de solução e porque suspeita que o tabu dos selvagens polinésios não se acha tão longe de nós como pensávamos inicialmente, que as proibições morais e tradicionais a que obedecemos poderiam ser essencialmente aparentadas a esse tabu primitivo.
Cita o estudioso W. Wundt que promete remontar às raízes últimas da idéia de tabu. De acordo com este, o conceito de tabu abrange todos os costumes em que se exprime o temor ante certos objetos ligados às idéias de culto ou ante as ações que a elas se referem. Se entendemos isto como tabu, então não existe povo e estágio de cultura que tenha escapado aos danos do tabu.

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Nos australianos ele divide as proibições do tabu em duas classes, conforme atinjam animais, seres humanos ou outros objetos. O tabu dos animais, que consiste essencialmente na proibição de matar e devorar, forma o núcleo do totemismo. O tabu da 2ª espécie, que tem como objeto os homens, é de carater essencialmente outro. Limita-se de antemão a condições que implicam uma situação de vida excepcional para o alvo do tabu. Assim, rapazes são tabu nas festas de iniciação masculina, mulheres são tabus durante a menstruação e também recém-nascidos, doentes e mortos. Os tabus do 3º tipo, que recaem sobre árvores, plantas, casas, lugares, são variáveis.
As mudanças que o tabu experimenta na cultura dos polinésios e malaios não são profundas, tendo como maior diferença social, conforme Wundt, o fato de que reis e sacerdotes exercem um tabu especialmente eficaz e são eles próprios sujeitos a uma maior coerção do tabu.
As verdadeiras fontes do tabu brotam ali onde os mais primitivos e mais duradouros instintos humanos tem sua origem, no temor à ação dos poderes demoníacos.

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Pouco a pouco, o tabu torna-se um poder fundamentado em si mesmo, independente do demonismo. Torna-se a coerção do costume e da tradição e, enfim, da lei.
Wundt afirma, portanto, que o tabu é a expressão e derivação da crença dos povos primitivos em poderes demoníacos. Mais tarde libertou-se dessa raiz e continuou sendo um poder simplismente porque o era, devido a uma espécie de obstinação psíquica; assim tornou-se ele a raiz de nossos mandamentos morais e nossas leis. Freud qualifica como decepcionante a explicação de Wundt, pois isto não significa ir às fontes do tabu, pois na psicologia, o medo ou os demônios não podem ser considerados coisas últimas. Seria diferente se os demônios realmente existissem; mas sabemos que, como os deuses, são criações das forças psíquicas humanas; foram criados por algo e a partir de algo.
Acerca do duplo sentido do tabu, Wundt exprime opiniões significativas, mas não inteiramente claras. Nos primórdios do tabu ainda não há uma divisão entre sagrado e impuro, segundo ele. Justamente por isso tais conceitos não tem o significado que adquiriram depois, quando se tornaram opostos.

(p.20)

A crença, própria do tabu original, num poder demoníaco que se acha oculto no objeto e que, se este é tocado ou usado ilicitamente, vingam-se com o enfeitiçamento do infrator, nada é se não o medo objetivado. Este ainda não se ramificou nas duas formas que assume num estágio desenvolvido: a veneração e o horror. Mas como surge esta separação? Segundo Wundt, pelo transplante dos preceitos do tabu- do âmbito dos demônios para o dos deuses. A oposição de sagrado e impuro coincide com a sucessão de dois estágios mitológicos, dos quais o primeiro não desaparece inteiramente quando o seguinte é alcançadom mas subsiste como algo inferior que é cada vez mais acompanhado de desprezo.
Quem aborda o problema do tabu a partir da psicanálise, isto é, da investigação da parcela inconsciente na vida psiquica individual, se dá conta de que esses fenômenos não lhe são desconhecidos.

(p.21)

A semelhança do tabu com o transtorno obsessivo pode ser apenas externa, valer para as formas em que se manifestam, não se estendendo à sua essência. Tendo este aviso, Freud nçao deixará de fazer a comparação pretendida.
A 1ª coincidência das proibições obsessivas com o tabu está em que são igualmente desprovidas de motivação e enigmáticas em sua origem. É desnecessária uma ameaça de castigo externa, pois há uma cereza interna (uma consciência) de que a transgressão ocasionará uma intolerável desgraça.

(p.22)

Como no tabu, a interdição principal e núcleo da neurose é a de contato. Tudo que dirige os pensamentos para a coisa proibida, que produz um contato em pensamento com ela, é proibido tanto quanto ao contato físico direto. A mesma abrangência é encontrada no tabu.
As proibições obsessivas têm a característica de serem extremamente deslocáveis, estende-se de um um objeto a outro por meio de qualquer conexão e tornam esse novo objeto impossível. Esta impossibilidade termina por invadir o mundo inteiro. Ao descrever as proibições do tabu já sublinhamos esses atributos de capacidade de contágio e transmissibilidade. Também sabemos que quem infringiu um tabu ao tocar em algo que é tabu  torna-se ele próprio tabu e ninguém pode entrar em contato com ele.
Dá 2 exemplos de transferência (ou deslocamento) de proibição: um é retirado da vida dos maori, o outro, da observação de uma doente obsessiva.

(p.23)

Resume em que pontos as concordâncias entre os costumes do tabu e os sintomas da neurose obsessiva se manisfestam mais claramente: na ausência de motivos para os preceitos; em sua reafirmação por uma necessidade interior; em seu caráter deslocável e no perigo de contagio pelo proibido; no fato de originarem ações cerimoniosas, preceito que advém das proibições.

(p.24)

Conta a história de um caso típico de delírio de toque em que uma criança tinha o desejo de tocar mais foi proibida. A proibição foi aceita por se ancorar em forças internas e revelou-se mais forte do que o instinto. A consequência da proibição foi apenas reprimir o instinto e bani-lo para o inconsciente. Proibição e instinto foram ambos mantidos. Estava criada uma situação não resolvida que deriva tudo o mais.
A principal característica é o que se poderia chamar a atitude AMBIVALENTE do indivíduo quanto a um objeto, ou melhor, quanto sobre à ação sobre ele. Ele quer sempre realizar esta ação- o toque- e também a abomina. A oposição entre as duas correntes não é conciliável a curto prazo, pois elas são localizadas  de tal modo na vida psíquica, que não podem encontrar-se. A proibição torna-se claramente consciente, o desejo contínuo de tocar é inconsciente, a pessoa nada sabe dele. Não houvesse esse fator psicológico, uma mabivalência não poderia manter-se tão longamente nem levar a tais consequências.

(p.25)

A proibição deve sua força - seu caráter obsessivo- justamente à relação com sua contrapartida inconsciente, o desejo oculto e não amortecido, ou seja, uma necessidade interna, inacessível à compreensão consciente. E sua transmissibilidade e capacidade de expansão refletem um processo que combina com o desejo inconsciente e é particularmente facilitado pelas condições psicológicas do inconsciente.

(p.26)

Faz uma tentativa de abordar o tabu como se fosse da mesma natureza que uma proibição obsessiva dos doentes. Deixa claro, de antemão, que muitas das proibições de tabu consideradas são de tipo secundário, deslocado e deformado.  Além disso, as diferenças entre a situação dos selvagens e a dos neuróticos podem ser importantes o suficiente para excluir uma total concordância.
Pode-se reconstruir a história do tabu segundo o modelo das proibições obsessivas. Os tabus seriam proibições antiquíssimas, impostas uma vez a uma geração de homens primitivos, ou seja, neles inculcadas violentamente pela geração anterior. Elas então foram mantidas de geração em geraação. Uma coisa certamente resultou da permanência do tabu: o desejo original de fazer o proibido continuar a existir  nos povos em que há o tabu. Eles tem, em relação a tais proibições, uma atitude ambivalente; nada gostariam mais de fazer, em seu inconsciente, do que infrigi-las, mas também tem receio disso; receiam justamente porque querem, e o temor é mais forte que o desejo.

(p.27)

As mais importantes e antigas proibições do tabu são as duas leis fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico e evitar relações sexuais com indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto.
A variedade das manifestações do tabu, reduz-se para nós a uma unidade: o fundamento do tabu é uma ação proibida, para a qual há um forte pendor no inconsciente.
Sabemos, sem o compreender, que quem faz o proibido, quem viola o tabu, torna-se ele mesmo tabu. Isto ocorre porque tem o perigoso atributo de tentar outros a seguir seu exemplo. Enfim, é portanto, realmente contagioso, na medida em que todo exemplo convida à imitação, e por isto tem de ser evitado.

(p.28)

Mas um indivíduo pode não ter violado um tabu e, no entanto, ser tabu de forma duradoura ou transitória, por encontrar-se num estado que tem o atributo de estimular os desejos proibidos dos outros, de neles despertar o conflito da ambivalência.

(p.29)

Nas proibições do tabu, o contato desempenha um papel importante por ser o começo de todo controle, de toda tentativa de servir-se de uma coisa ou pessoa.
A transmissibilidade do tabu reflete a inclinação do impulso inconsciente, demonstrada na neurose, de constantemente deslocar-se para novos objetos por vias associativas. Desse modo percebemos que a força mágica do mana corresponde a duas faculdades mais reais, a aptidão de lembrar ao ser humano os seus desejos proibidos e aquela de induzi-lo a transgredir a proibição em obediência a tais desejos.
Se a violação do tabu pode ser reparada mediante uma exíação ou penitência, que significam a renuncia a algum bem ou alguma liberdade, isso vem demonstrar que a obediência aos preceitos do tabu era ela mesma uma renúncia a algo que se desejaria. A inobservância de uma renúncia é contrabalançada por uma renúncia em outro lugar. Isto nos faz concluir que nas cerimonias do tabu a penitência é algo mais primordial que a purificação.

(p.30)

Resumi qual compreensão se tem ao equiparar o tabu e a proibição obsessiva do neurótico: o tabu é uma proibição antiquissima, imposta do exterior (por uma autoridade) e voltada contra os mais fortes desejos do ser humano. A vontade de transgredi-lo continua a existir no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu tem uma postura ambivalente quanto ao alvo do tabu. A força mágica a ele atribuída remionta à capacidade de induzir em tentação; ela age como um contágio, porque o exemplo é contagioso, e porque o desejo proibido desloca-se para outra coisa no inconsciente. Expiar a violação do tabu com uma renúncia mostra que na base da obediência ao tabu se acha uma renúncia.

(p.31)

Naturalmente não é suscetível de prova a afirmação relativa à gênese do tabu, segundo a qual ele se originou de uma proibição antiquíssima, que um dia foi imposta do exterior. Então se procurará confirmar se as determinantes psicológicas do tabu são as mesmas da neurose obsessiva. Se conseguir mostrar também nas prescrições do tabu a ambivalência, o governo de tendências contrárias, ou achar entre eles algumas que deem expressão simultânea às duas correntes, à maneira das ações obsessivas, a concordância psicológica entre o tabu e a neurose obsessiva está garantida.
As duas proibições fundamentais do tabu são inacessíveis à análise por fazerem parte do totemismo. Outras injunções do tabu são de origem secundárias e inúteis para a nossa finalidade, pois nos povos em questão, o tabu veio a ser a forma comum de legislação.
Destacará os tabus relativos: aos inimigos; aos chefes e aos mortos, da coleção de J. G. Frazer.

O TRATAMENTO DOS INIMIGOS

(p. 32)

Se tendemos a atribuir aos povos selvagen e semisselvagens uma crueldade desinibida e implacável ante os inimigos, ficaremos surpresos em saber que entre eles o homicídio obriga a observância de uma série de prescrições, incluídas entre as práticas do tabu. Tais prescrições são divididas em 4 grupos: reconciliação com o inimigo morto; restrições; atos de expiação e purificação do homicida e determinadas medidas cerimoniais. Não se sabe até que ponto são generalizadas ou não essas práticas do tabu nesses povos, porém, é lícito supor que são práticas bastante difundidas, e não peculiaridades isoladas.

(p.34)

O que se conclui de todos esses preceitos é que não apenas impulsos hostis são manifestos na atitude para com os inimigos. Neles também enxergamos atitudes de arrependimento, de apreciação do inimigo, de má consciência por ter-lhe tirado a vida. Quer nos parecer que também nesses selvagens está vivo o mandamento "Não matarás", que não pode ser violado impunemente, muito antes de qualquer legislação comunicada por um deus.

(p.37)

Na explicação corrente para todos esses preceitos de apaziguamento, restrição, penitência e purificação combinam-se dois principios: a extensão do tabu do morto a tudo que entrou em contato com ele e o medo do espírito do morto.

O TABU DOS SOBERANOS

A atitude dos povos primitivos ante seus chefes, reis e sacerdotes é regída por dois princípios básicos, que parecem antes se complementar do que se contradizer. É necessário protegê-los, mas também proteger-se deles. Evita-se qualquer contato direto ou indireto com a perigosa santidade e, quando isso não pode ser evitado, cria-se um cerimonial para afastar as consequências temidas.

(p.38)

Assim, ocorre o fato notável de o toque do rei vir a ser remédio e proteção contra os perigos decorrentes do contato com o rei, mas certamente há o contraste entre o poder curativo do toque intencional, por parte do rei, e o perigo de ele ser tocado, o contraste entre passividade e atividade para com o rei. {será que tem algo haver com a história dos reis taumaturgos}

(p.39)

Talvez a maor parte do tabu dos senhores não se explique pela necessidade de proteção diante deles. A outra consideração no tratamento dos indivíduos privilegiados, a necessidade de guardar eles próprios dos perigos que os ameaçam, é que teve o mais nítido papel na criação dos tabus e, com isso, no surgimento da etiqueta da corte.
A necessidade de proteger o rei de todo o perigo imaginável vem de sua enorme importância para o bem ou mal-estar dos súditos. Esses reis de povos selvagens têm um poder e uma capacidade de conferir benefício que são próprios apenas de deuses.

(p.40)

Parece contraditório que indivíduos de tamanho poder necessitem ser cuidadosamente protegidos de perigos que os ameacem, mas essa não é a unica contradição. Esses povos também acham necessário vigiar seus reis, para que utilizem adequadamente seus poderes; eles não estão seguros de boas intenções e dos escrúpulos do rei. Um quê de desconfiança inclui-se entre os motivos dos tabus referentes a ele. A idéia nas monarquias era de que o soberano existia apenas para o súdito e sua vida é valiosa apenas enquanto ele cumpre os deveres de sua posição. Se o rei é seu deus, ele é ou deveria ser também seu protetor; e se ele não protegê-lo, tem que dar lugar a outra divindade que o faça. Um rei dessa espécie vive confinado numa rede cerimoniosa, uma rede de proibições e observâncias, cuja intenção não é contribuir para a sua dignidade, menos ainda para o seu conforto, mas de impedi-lo de uma conduta que possa envolvê-lo numa catástrofe.

(p.41)

Um exemplo de tal aprisionamento e paralisação de um governo sagrado mediante cerimoniais tabus pode ser visto no modo de vida do micado japonês dos primeiros séculos.

(p.43)

Em muitos povos selvagens, a severidade das limitações para os reis-sacerdotes  teve consequências historicamente significativas, e particularmente interessantes para o nosso ponto de vista. A dignidade dos reis-sacerdotes deixou de ser algo desejável; aquele que estava para recebê-la fazia de tudo para dela escapar.

(p.44 e 45)

Concedem-se aos governantes grandes prerrogativas, que particulamente correspondem aos tabus impostos aos demais. São pessoas privilegiadas; podem fazer ou fruir o que o tabu contesta aos demais. Em contraste com essa liberdade, porém, são limitadas por outros tabus, que não oprimem os indivíduos comuns. eis aqui uma primeira oposição, quase contradição, entre uma maior liberdade e uma maior limitação para as mesmas pessoas. São lhes atribuído extraordinários poderes mágicos e, por isso, teme-se o contato com elas ou seus bens, enquanto, por outro lado, espera-se o mais benéfico efeito de tais contatos. Aqui parece haver uma 2ª contradição, bem flagrante; mas já vimos que é só aparente. E uma outra contradição está em atribuir ao governante tamanho domínio sobre os eventos da natureza e, no entanto, achar-se obrigado a protegê-lo cuidadosamente dos perigos que o ameaçam, como se seu próprio poder, que é tão grande, não fosse capaz disso. A etiqueta dos tabus, a que toda a vida do rei é sujeita, serve simultaneamente a todos esses propósitos de tutelar o rei, protegê-lo dos perigos e protefer os súditos do perigo que ele representa para eles.
É natural explicar da seguinte forma a relação complicada e contraditória entre os homens primitivos e seus governantes. Por motivos supersticiosos ou de outra natureza, expressam-se no tratamento dos reis tendências variadas, cada uma das quais é desenvolvida ao extremo, sem consideração pelas demais.
Não haveria problema com essa explicação, mas a técnica psicanalítica permitirá ir adiante e dizer algo mais sobre a natureza dessas variadas tendências.

(p.46)


Submetendo à análise os fatos descritos, como se fizessem parte do quadro de sintomas de uma neurose, detemo-nos primeiramente no excesso de angustoso cuidado que se apresenta como razão para o cerimonial do tabu. Na neurose obsessiva a ocorrência de tal carinho excessivo é bastante comum. Ele sempre surge quando há uma corrente oposta mas inconsciente de hostilidade, ou seja, quando se verifica o caso típico de ambivalência emocional. A hostilidade é então abafada por uma intensificação excessiva do carinho, que se manifesta como angustiosa solicitude e que se torna obsessiva, pois de outro modo não cumpriria sua tarefa de manter sob repressão a corrente oposta inconsciente.

(p.47)

Outro aspecto da conduta dos primitivos em relação aos governantes recorda um procedimento que emerge claramente no chamado delírio de perseguição. Nele a importância de determinada pessoa é enormemente elevada para que lhe seja mais facilmente atribuída a responsabilidade por tudo de nocivo que ocorre ao doente. O modelo que o paranóico reproduz, no delírio de perseguição, está na relação da criança com o pai. Na ideia que o filho tem do pai, este normalmente possui tal plenitude de poderes, e vê-se que a desconfiança em relação ao pai está intimamente ligada à imensa estima por ele. Quando o paranóico designa alguém de suas relações como seu perseguidor, coloca-o assim ao lado do pai, situa-o numa posição que lhe permite fazê-lo responsável por tudo o que percebe como sua desgraça.
O apóio mais sólito que compara as proibições dos tabus a sintomas neuróticos  encontramos nas próprias cerimônias dos tabus. Se admitimos que os efeitos que produzem eram buscados desde o início, tais cerimônias revelam inequivocadamente seu duplo significado e sua derivação de tendências ambivalentes.  Elas não apenas distinguem os reis e os elevam acima de todos os comuns mortais, como lhes tornam a vida um sofrimento e um fardo insuportável, e os obrigam a uma servidão muito pior que a de seus súditos.

(p.48)

O cerimonial do tabu dos reis é supostamente (instância consciente da psique) a mais alta honra e segurança para eles, e propriamente (instância inconsciente) o castigo por sua elevação, a vingança que os súditos tem sobre ele.

O TABU DOS MORTOS

O tabu dos mortos evidencia uma particular virulência na maioria dos povos primitivos. Manifesta-se primeiro nas consequências trazidas pelo contato com o morto, e no tratamento dos que guardam luto por ele.

(p.49)

Entre os maori, todo aquele que tocava num cadáver ou participava do seu enterro era bastante impuro e quase cortado de qualquer relacionamento com os semelhantes, era boicato, digamos. E quando, passado o período de isolamento, o indivíduo conspurcado pelo cadáver podia novamente juntar-se aos companheiros e tudo o que ele usou durante esse tempo era destruído e jogado fora.
As observâncias de tabu após o contato físico com um morto são as mesmas em toda a Polinésia e Melanésia e em parte da África. Seu elemento mais constante é a proibição de tocar a comida, e a decorrente necessidade de a pessoa ser alimentada por outros.

(p.50 e 51)

Trata das restrições impostas às pessoas cujo contato com os mortos deve ser entendido figuradamente: os parentes enlutados, os viúvos e viúvas. O contato em sentido figurado é entendido mesmo como contato físico, pois o espírito do morto não se afasta dos parentes, não deixa de rondá-los durante o luto.

(p.52)

Um dos costumes mais estranhos e singulares, ligados aos tabu dos mortos, entre os primitivos, é a proibição de pronunciar o nome do defunto. Para alguns desses povos, a proibição e suas consequências valem apenas no período do luto, para outros são permanentes, mas em todos os casos parecem atenuar-se à medida que passa o tempo.

(p.53)

A estranheza desse tabu dos nomes será atenuada se tivermos presente que para os selvagens o nome é elemento essencial e patrimônio importante da personalidade, que eles atribuem à palavra o pleno sentido de coisa.

(p.54)

Como era de esperar, a atitude dos neuróticos obsessivos em relação aos nomes é identica à dos selvagens. Eles mostraram uma total sensibilidade de complexo em relação a enunciar ou escutar certas palavras e nomes, e do tratamento que dão ao próprio nome se origina um bom número de inibições frequentemente graves. já não nos surpreende, então, que os selvagens considerem o nome do morto como parte da pessoa deste e o tornem objeto do tabu que lhe diz respeito. Falar o nome do morto pode ser remontado ao contato tido com ele, e devemos abordar o problema, mais amplo, de por que esse contato é atingido por um tabu tão rigoroso. A explicação mais evidente apontaria para o natural horror despertado pelo cadáver e pelas mudanças que logo nele se observam.

(p.55)

Algum papel também desempenharia o luto pelo morto. Mas o horror ante o cadáver não responde por todos os detalhes dos preceitos tabu, e o luto não explica por que a menção do nome do morto é uma forte injúria para os que a ele sobreviveram. Pelo contrário, o luto gosta de ocupar-se com o falecido, evocar sua lembrança e conservá-la tanto quanto possível.
De acordo com Wundt, no instante da morte o parente amado torna-se um demônio, do qual os sobreviventes só podem esperar coisas hostis, e de cujos desejos ruin devem guarda-se por todos os meios.

(p.57)

A suposição de que os entes mais caros transformam-se em demônios após a morte suscita novas questões. O que levou os primitivos a atribuir aos seus mortos queridos esta mudança nos sentimentos? Por que fizeram deles demônios?

(p.58)

Quando uma pessoa perde alguém próximo, não é raro que ela seja acometida de dolorosas apreensões(recriminações obsessivas), imaginando se não teria sido responsável, devido a alguma imprevidência ou negligência, pela morte do ente querido. Nenhuma objetiva refutação da suposta culpa conseguem por fim ao tormento, que seria a expressão patológica de um luto e que gradualmente vai se extinguindo com o tempo. Não é que o indivíduo enlutado realmente seja culpado da morte ou tenha incorrido em negligência; mas nele havia mesmo algo, um desejo inconsciente para ele próprio, que não ficaria insatisfeito com a morte e que a teria provacado, se tivesse poder para isso. É contra esse desejo inconsciente que reage a recriminação, após a morte da pessoa amada. Esta hostilidade oculta por trás do amor, no inconsciente, existe em quase todos os casos de intensa ligação afetiva a determinada pessoa, é o caso clássico, o paradigma da ambivalência dos afetos humanos.

(p.59)

Se supomos que a vida emocional dos primitivos possui elevado grau de ambivalência semelhante ao que atribuímos aos doentes obsessivos, torna-se compreensível que após a dolorosa perda seja necessária uma reação à hostilidade latente no inconsciente. Mas essa hostilidade, penosamente sentida como satisfação pela morte no inconsciente, tem outro destino no homem primitivo; ele defende-se dela, deslocando-a para o objeto da hostilidade, para o morto. A esse processo de defesa chamamos de projeção. O sobrevivente nega que jamais tenha abrigado impulsos hostis em relação ao morto querido; é a alma do falecido que agora os abriga. Embora a defesa mediante a projeção seja bem-sucedida, o caráter de punição e de arrependimento dessa reação afetiva se mostrará no fato de ele sentir medo. O tabu cresceu no solo de uma postura afetiva ambivalente. O tabu dos mortos também deriva da oposição entre a dor consciente e a satisfação inconsciente com a morte havida. Sendo esta a origem do rancor dos espíritos, é natural que os sobreviventes mais próximos devam temê-lo mais do que todos.
Também nisso as prescrições dos tabus, como os sintomas neuróticos, têm duplo significado. Por um lado, em seu carater restritivo dão expressão ao luto, e por outro lado revelam nitidamente o que desejam ocultar, a hostilidade ao morto, agora fundamentada como legítima defesa.

(p.60)

Já nos opusemos à concepção de Wundt, segundo a qual a natureza do tabu está no temor ante os demônios, mas agora concordamos com a explicação de que o tabu dos mortos deriva do temor à alma transformada em demônio.
Os sentimentos díspares em relação ao morto - ternos e hostis- procuram ambos vigorar, por ocasião da perda, como luto e como satisfação. Inevitavelmente haverá um conflito entre os dois opostos, e, como a hostilidade é inconsciente, o resultado do conflito não pode ser a subtração de uma intensidade da outra. O processo se resolve no que a psicanálise chama de projeção.

(p.61)

A hostilidade, da qual o indivíduo nada sabe nem quer saber, é jogada da percepção interna para o mundo externo, é desprendida da própria pessoa e empurrada para outra. Não se deve excluir que esse processo de projeção, que transforma os falecidos em inimigos malévolos, encontre apoio nas hostilidades reais que deles são lembradas e que efetivamente lhes podem ser recriminadas. Mas a coisa não pode ser tão simples que baste este fator para nos tornar compreensível a criação dos demônios através da projeção. Certamente as faltas dos mortos explicam, em parte, a hostilidade dos que a eles sobrevivem, mas não influiriam se estes não desenvolvessem por si próprios tal hostilidade.

(p.62)

A projeção da hostilidade inconsciente sobre os demônios, no tabu dos mortos, é apenas um exemplo a que se deve atribuir enorme influência na configuração da psique primitiva. No caso considerado, a projeção serve para resolver um conflito emocional. Mas a projeção não é criada para a defesa, também ocorre onde não há conflitos. A projeção de perscepções internas para fora é um mecanismo primitivo, ao qual estão sujeitas nossas percepções sensoriais e que normalmente tem o papel principal na configuração de nosso mundo externo.

(p.63)

A projeção dos próprios impulsos maus nos demônios é apenas parte de um sistema que se tornou a visão de mundo dos primitivos, e que no próximo ensaio viremos conhecer como animismo. É  bem provável que se tenha chegado ao conceito de demônio a partir da tão significativa relação com os mortos. Então a ambivalência inerente a essa relação veio a expressar-se, no curso da evolução humana, no fato de duas formações psíquicasinteiramente opostas surgirem da mesma raiz: de um lado, o temor de demônios e fantasmas; de outro, a adoração de ancestrais.

(p.64)

O fato de os demônios sempre serem vistos como espíritos de gente há pouco falecida atesta a influência do luto na origem da crença em demônios. Cabe ao luto uma tarefa psiquica bastante específica, ele deve desprender dos mortos as recordações e expectativas dos que lhe sobrevivem. Uma vez realizado esse trabalho, a dor se atenua; com ela, o arrependimento e a recriminação, e, portanto, também o medo dos demônios.
Se acompanharmos a atitude dos vivos para com os mortos através dos tempos, é inegável que a ambivalência diminui bastante. Onde antigamente o ódio satisfeito e a dolorosa afeição lutavam entre si, hoje se encontra a piedade, como se fora uma cicatriz e exige que dos mortos não se fale, a não ser bem.

(p.65)

Devemos conceder aos impulsos psiquicos dos homens primitivos um maior grau de ambivalência do que o encontrado no homem civilizado de hoje. Decaindo essa ambivalência, desapareceu lentamente o tabu, o sintoma de compromisso do conflito de ambivalência.
Lembra que Wundt nos oferece o duplo significado da palavra tabu: sagrado e impuro. Originalmente a palavra não significa essas duas coisas, designava o que é demoníaco, que não pode ser tocado, e, assim, enfatiza um traço comum entre aos dois conceitos extremos; mas essa persistente característica comum demonstraria que os âmbitos do sagrado e do impuro coincidiam na origem, que apenas depois eles se diferenciariam.
Em oposição a isto, nossa abordagem leva a concluir que desde o inicio a palavra tabu tem esse duplo sentido, que ela serve para indicar uma determinada ambivalência e tudo o que se originou no terreno dessa ambivalência.

(p.66)

A compreensão do tabu também lança luz sobre a natureza e a gênese da consciência moral. Podemos falar de uma consciência do tabu e uma consciência de culpa do tabu, após a transgressão do tabu. A consciência do tabu é provavelmente a mais antiga forma que encontramos do fenômeno da consciência.
O que é consciência? Conforme o testemunho da linguagem, é aquilo que se sabe com a maior certeza. Consciência é a percepção interna da rejeição de determinados desejos existentes em nós.

(p.67)

Todo aquele com consciência sente dentro de si a justificativa da condenação, a recriminação pelo ato realizado. A mesma característica mostra o comportamento dos selvagens ante o tabu; o tabu é um mandamento da consciência, sua violação faz surgir um terrível sentimento de culpa. Portanto, também a consciência provavelmente surge com base numa ambivalência emocional, a partir de relações humanas bem específicas às quais se liga tal ambivalência, e sob as condições reivindicadas para o tabu e a neurose obsessiva, de quem um dos sentimentos opostos seja inconsciente e conservado reprimido pelo outro, obsesssivamente dominante. Essa conclusão se harmonisa com várias coisas que aprendemos na análise das neuroses. Primeiro, o fato de no caráter dos neuróticos obsessivos haver um traço de penosa conscienciosidade, como sintoma reativo à tentação que espreita no inconsciente, e de o mais alto grau de consciência da culpa ser por eles desenvolvido quando há intensificação da doença.

(p. 68)

Em segundo lugar, chama-nos a atenção que a consciência de culpa tenha muito da natureza da angústia. Mas a angústia remete a fontes inconscientes; a psicologia da neurose nos ensinou que, quando desejos são reprimidos, sua libido é transformada em angústia.

(p.69)

Os processos psiquicos do inconsciente não são nada idênticos àqueles que nos são conhecidos de nossa vida psiquica consciente, eles gozam de algumas liberdades dignas de nota, que foram subtraídas àqueles. Um impulso inconsciente não precisa ter surgido ali onde o vemos aparecer; pode vir de outro lugar, ter-se ligado originalmente a outras pessoas e relações e, através do mecanismo de deslocamento, ter chegado ali onde nos chama a atenção.

(p.70)

Embora insistindo na identidade essencial da proibição do tabu com a proibição moral, não contestamos que tem de haver uma diferença psicológica entre as duas. Até aqui, se deixou guiar na consideração psicanalítica dos fenômenos do tabu pelas concordâncias demonstradas com a neurose obsessiva; mas o tabu não é uma neurose, e sim uma instituição social. Cabe-nos então indicar onde se acha a diferença de princípio entre a neurose e uma criação cultual como o tabu.
Freud toma um único fato como ponto de partida. Teme-se entre os primitivos, que a violação do tabu acarrete uma punição que cairá sobre aquele que se fez responsável pela transgressão. Na neurose obsessiva é diferente. Se o doente realiza algo proibido, ele não teme o castigo para si, mas para outra pessoa. Nisso o neurótico se conduz de modo altruísta, portanto, e o primitivo, de modo egoísta.

(p.72)

Traz por meio de outro exemplo a 2ª característica da neurose. Em suas manifestações, o tabu apresenta enorme semelhança com o medo de contato dos neuroticos, o medo de toque. Nessa neurose a proibição é normalmente de contato sexual. No tabu, o contato proibido tem, claramente, não apenas sentido sexual, mas sobretudo o significado mais geral de ataque, de apoderamento, de afirmação da própria pessoa.
As neuroses são formações associais; elas procuram obter, por meios privados, o que na sociedade surgiu mediante o trabalho coletivo. Na análise instintual das neuroses percebemos que nelas a influência determinante é a das forças instintuais de origem sexual, enquanto as formações culturais correspondentes baseiam-se em instintos sociais, aqueles oriundos da junção de elementos egoístas e eróticos.

(p.73)

Do ponto de vista genético, a natureza associal da neurose resulta de sua tendência original de escapar de uma realidade insatisfatória, rumo a um prazeroso mundo de fantasia.

(p.74)

Animismo é a doutrina das almas, no sentido mais amplo, a dos espíritos em geral. O termo animismo, antes aplicado a determinado sistema filosófico, parece ter recebido de E. B. Tylor seu significado atual.

(p.75)

Como chegaram os homens primitivos às concepções peculiarmente dualistas em que se baseia o sistema animista? Acredita-se que pela observação dos fenômenos do sono e da morte, a ele tão similar, e pelo esforço de explicar esses estados, de tamanho interesse para todo indivíduo. O problema da morte, mais que tudo, teria sido o ponto de partida da teorização.
O comportamento do homem primitivo, de reagir aos fenomenos que estimulam sua reflexão formando a ideia de almas e transferindo-as para objetos do mundo exterior, é julgado bastante natural e não particularmente enigmático. Antes o fato de as concepções animistas terem aparecido concordantemente nos mais diversos povos e em todas as épocas, Wundt afirmou que elas: são o produto psicológico necessário de uma consciência mitopoética [...] e nesse sentido, portanto, o animismo primitivo deve ser considerado a expressão espiritual do estado natural do homem, na medida em que é acessível à nossa observação.

(p.76)

O animismo é um sistema de pensamento, ele não só explica um fenômeno particular, mas permite compreender o mundo como unidade, a partir de um ponto. No curso dos tempos a humanidade produziu três grandes visões de mundo, se dermos crédito às autoridades: a animista (mitológica), a religiosa e a científica. Entre elas, a 1ª criada, o animismo, é talvez a mais consequente e exaustiva, a que explica de maneira cabal a natureza do mundo. Esta 1ª concepção de mundo da humanidade é uma teoria psicológica. Remontando a esses três estágios de visões do mundo, fala-se que o animismo em si não é ainda uma religião, mas contém as premissas sobre as quais depois se constroem as religiões.
De mãos dadas com o animismo, há instruções de como proceder para assenhorar-se de homens, coisas e animais, isto é, de seus espíritos. Tais instruções, conhecidas pelos nomes de feitiço e magia são consideradas a estratégia do animismo.

(p.77)

Pode-se fazer uma distinção conceitual entre feitiço e magia? A feitiçaria é, no essencial, a arte de influenciar os espíritos, tratando-os como os seres humanos em circunstâncias iguais, isto é, apaziguando-os, conciliando-os, obtendo sua simpatia, intimidando-os, roubando-lhes o poder. A magia, porém é outra coisa; ela ignora os espíritos, no fundo, e recorre a meios especiais, não aos métodos psicológicos comuns. Logo percebemos que a magia é a parte mais primitiva e importante da técnica animista, pois entre os meios para lidar com espíritos encontram-se também meios mágicos, e a magia tem aplicação igualmente em casos, segundo nos aparece, em que a espiritualização da natureza não foi realizada.
A magia tem de servir aos propósitos mais diversos: submeter os eventos naturais à vontade do homem, defender a pessoa dos perigos e dos inimigos e dar-lhe o poder de prejudicar seus inimigos. Mas o princípio em cujos pressupostos se baseia a atividade mágica, ou melhor, o princípio da magia, é: tomar erradamente um vínculo ideal por um real.

(p.78)

Um dos mais difundidos procedimentos mágicos para afetar um inimigo é fazer uma imagem dele com um material qualquer. Pouco importa a semelhança no caso. Qualquer objeto pode ser promovido à imagem do inimigo. O que se faz a essa imagem sucede também ao original odiado; ferindo-se uma parte do corpo daquela, este fica doente no mesmo lugar. A mesma técnica mágica pode estar a serviço da devoção religiosa, em vez de inimizade pessoal, e ajudar deuses na luta contra demônios maus.

(p.79)

De vários atos mágicos, Freud destacará apenas 2, que tiveram grande papel entre os povos primitivos de todas as épocas e que permaneceram conservados, em parte, nos mitos e cultos de estágios: as magias para obtenção de chuva e de fertilidade. A chuva é produzida por meios mágicos, sendo imitada, ou imitando-se também as nuvens e a tempestade que a produzem. Também a fertilidade do solo era assegurada por via mágica, oferecendo-lhe o espetáculo de um ato sexual humano.

(p.80)

Nestes 2 exemplos existe uma semelhança entre o ato realizado e o evento esperado. Daí Frazer chamar de imitativa ou homeopática essa espécie de magia. Numa fase posterior, em vez dessa magia da chuva serão organizadas procissões até um templo e serão feitas orações.
Num segundo grupo de atos mágicos o princípio da semelhança já não conta. Querendo prejudicar um inimigo, pode-se utilizar um outro procedimento. Obtém-se uma amostra sua e faz-se alguma coisa hostil com esses objetos. É como apoderar-se da pessoa mesma. Na visão dos primitivos, entre os elementos essenciais de uma personalidade se acha o nome.

(p.81)

Os mais elevados motivos para o canibalismo dos primitivos têm origem semelhante. Ao assimilar partes do corpo de uma pessoa, devorando-as, o indivíduo se apropria também das características que a ela pertenceram. Não faz diferença, para o efeito mágico, que o vínculo já não exista, ou que tenha consistido apenas num só contato relevante.

(p.82)

Esses últimos casos ilustram o que Frazer chama de magia contagiosa, diferenciando-a da imitativa. O que neles se considera eficaz já não é a semelhança, mas o nexo no espaço, a contiguidade, ao menos a contiguidade imaginada, a lembrança de sua existência. Mas, como semelhança e contiguidade são os dois princípios essenciais dos processos associativos, evidencia-se o predomínio da associação de idéias.
A princípio causa estranheza, então, que essa esclarecedora explicação da magia pudesse ser rejeitada como insatisfatória por vários autores. Refletindo um pouco mais, porém, vemos como justificada a objeção de que a teoria da associação apenas explica os caminhos que a magia segue, e não sua autêntica natureza, isto é, o equívoco de pôr leis psicológicas no lugar de leis naturais.

(p.83)

A magia imitativa, segundo Frazer, pode ser praticada sozinha, enquanto a magia contagiosa pressupõe normalmente a imitativa. Os motivos que impelem ao uso da magia são facéis de reconhecer, são os desejos humanos. Com o homem primitivo, ao desejo liga-se um impulso motor, a vontade e esta é agora usada para representar a satisfação, de modo que esta pode ser vivenciada através e alucinações motoras. Tal representação do desejo satisfeito é comparável à brincadeira das crianças, que nelas toma o lugar da técnica puramente sensorial de satisfação.

(p.84)

No estágio do pensamento animista não há ainda oportunidade de demonstrar objetivamente o verdadeiro estado de coisas; ela ocorre mais tarde, quando todos esses procedimentos ainda são cultivados, mas já é possível o fenomeno psiquico da duvida, como expressão de um pendor à repressão. Então os homens vão admitir que a invocação de espíritos nada consegue, se não existe a crença neles, e que também a força mágica da oração fracassada, se por trás dela não se acha a devoção.
A possibilidade de uma magia contagiosa baseada na associação por contiduidade nos mostra que o valor psiquico atribuído ao desejo e à vontade estendeu-se a todos os atos psiquicos que se acham à disposição da vontade. Há uma superestimação geral dos processos anímicos. As coisas recuam para segundo plano ante as ideias das coisas. As relações existentes entre as ideias são pressupostas igualmente entre as coisas. Como o pensamento não conhece distâncias, também o mundo mágico, telepaticamente, põe-se acima da distância física e trata uma situação passada como se fora presente.

(p.85)

Ressalta que os dois princípios da associação - semelhança e contiguidade- encontram-se na unidade mais ampla do contato. Associação por contiguidade é contato no sentido direto; associação por semelhança, no sentido figurado. Podemos sintetizar que o princípio diretor da magia, a técnica do modo de pensar animista, é o da onipotência dos pensamentos.
Freud explica que pegou essa expressão emprestada de um paciente que sofria de ideias obsessivas e que, após restabelecer-se com o tratamento psicanalítico, pôde dar provas de sua capacidade e sensatez. Ele havia a cunhado para explicar todos os acontecimentos singulares e inquietantes que pareciam persegui-lo.

(p.86)

É na neurose obsessiva que a conservação da onipotência dos pensamentos aparece do modo mais nítido, nela se acham mais próximos da consciência os resultados desse primitivo modo de pensar. Mas devemos guardar-nos de ver nisso um caráter distintivo dessa neurose, pois a investigação psicanalítica revela a mesma coisa nas outras neuroses. Em todas elas, o decisivo na formação dos sintomas é a realidade do pensar, não a do viver.

(p.87)

A onipotência dos pensamentos, a superestimação dos processos psiquicos em relação à realidade, tem irrestrita influência na vida emocional do neurótico e em tudo o que dela deriva. Mas, se o submetemos ao tratamento psicanalítico, que nele torna consciente o que é inconsciente, ele não poderá crer que os pensamentos são livres e sempre terá medo de exprimir desejos maus, como se, devido à expressão, eles inevitavelmente chegassem à realização.
Os atos obsessivos primários desses neuróticos são de natureza inteiramente mágica. Se não são feitiços, são contrafeitiços, dedicados a afastar as expectativas de desgraça com que a neurose costuma iniciar.

(p.88)

Se aceitarmos o referido curso das concepções do mundo na história humana, em que a fase animista é sucedida pela religiosa e esta pela científica, não será difícil acompanhar as vicissitudes da onipotência dos pensamentos através desses estágios. Na fase animista o homem atribui a si mesmo a onipotência; na religiosa, ele cede aos deuses, mas não a abandona seriamente, pois reserva-se a faculdade de influir sobre os deuses de maneiras diversas. Na concepção científica do mundo não há mais lugar para a onipotência do homem, ele reconhece a própria pequenez e submete-se resignamente à morte e às outras necessidades naturais. Mas a confiança no poder do espirito humano, a contar com as leis da realidade, retém algo da primitiva fé na onipotência.
As manifestações dos instintos sexuais podem ser observadas desde o começo, mas eles não se dirigem ainda para um objeto externo. Cada um dos componentes instintuais da sexualidade trabalha por si na obtenção do prazer, e acha sua gratificação no próprio corpo. Esse é o estágio do autoerotismo, que é sucedido pelo da escolha do objeto. O prosseguimento do estudo mostrou ser pertinente incluir um terceiro estágio entre esses dois. Nesse estágio intermediário, cuja relevância cada vez mais se impõe ao pesquisador, os instintos sexuais antes separados já se juntaram numa unidade e encontraram um objeto; mas esse objeto não é externo, alheio ao indivíduo, e sim o próprio Eu, já constituído por esse tempo. Nós o denominamos narcisismo. A pessoa se comporta como se estivesse enamorada de si mesma.

(p.89)

Embora ainda não nos seja possível uma caracterização suficientemente precisa desse estágio narcísico, no qual os instintos sexuais até então dissociados se agregam numa unidade e tomam o Eu como objeto, já suspeitamos que a organização narcísica jamais será abandonada inteiramente.
Podemos agora ligar ao narcisismo a elevada estima que primitivos e neuróticos atribuem aos atos psíquicos. Diríamos que nos primitivos o pensar ainda é, em grande medida, sexualizado, daí se originando a fé na onipotência dos pensamentos, a inabalável confiança na possibilidade de controlar o mundo e a impermeabilidade às simples experiências que poderiam instruir o homem sobre seu verdadeiro lugar no mundo. Quanto aos neuróticos, uma parte considerável dessa atitude primitiva permaneceu constitucional, por um lado; por outro, a repressão sexual neles ocorrida produz uma nova sexualização dos processos de pensamento.

(p.90)

Se é licíto vermos, na demonstrada onipotência de pensamentos entre os primitivos, uma evidência em favor do narcisismo, podemos arriscar uma comparação entre as etapas de desenvolvimento da concepção humana do universo e os estágios de desenvolvimento libidinal do individuo. Então a fase animista corresponde, tanto cronologicamente como em termos de conteúdo, ao narcisismo; a fase religiosa, ao estágio de eleição de objeto, caracterizado pela ligação aos pais; e a fase científica tem sua plena contrapartida no estado maduro do indivíduo que renunciou ao princípio do prazer e busca seu objeto no mundo exterior, adequando-se à realidade.
Apenas no ambito da arte a onipotência dos pensamentos foi conservada em nossa cultura. Unicamente na arte ainda sucede que um homem consumido por desejos realize algo semelhante à satisfação deles, e que essa atividade lúdica provoque efeitos emocionais como se fosse algo real.

(p.91)

A 1ª concepção do mundo a que os homens chegaram, a do animismo, era psicológica, portanto. Mas o animismo era natural e evidente para o homem primitivo; ele sabia como eram as coisas do mundo, ou seja, eram tal como ele as percebia. Estamos preparados para saber, portanto, que o homem primitivo deslocava relações estruturais de sua própria psique para o mundo exterior, e por outro lado, podemos fazer a tentativa de colocar de volta na psique humana aquilo que o animismo ensina sobre a natureza das coisas.

(p.92)

A técnica do animismo, a magia, mostra-nos do modo mais claro e inequivoco a intenção de impor às coisas reais as leis da psique, sendo que os espiritos ainda não desempenham nenhum papel, embora possam ser tomados como objetos de tratamento mágico. Os pressupostos da magia, portanto, são mais primordiais e antigos que a doutrina dos espíritos, que constitui o cerne do animismo.
Enquanto a magia ainda reserva toda a onipotência para os pensamentos, o animismo cede uma parte dessa onipotência aos espíritos, e assim toma o caminho que leva à criação de uma religião.

(p. 93)

A 1ª realização teórica do ser humano - a criação dos espíritos- teria nascido da mesma fonte que as primeiras restrições morais a que ele se sujeitou, os preceitos dos tabus.

(p.94)

Parte essencial de nossa estrutura psicológica tem seu reflexo e seu retorno na criação projetiva de almas e espíritos. Então é difícil contestar que a primitiva noção de alma, por mais que se diferencie da alma posterior, totalmente imaterial, coincide essencialmente com esta, ou seja, apreende pessoas e coisas como algo duplo, em cujas duas partes componentes se acham divididas as familiares características e modificação do todo. Essa dualidade original já é idêntica àquele dualismo que se manifesta na habitual separação de corpo e espírito.
Aquilo que projetamos na realidade esterna, não pode ser outra coisa senão o reconhecimento de um estado em que algo é dado, está presente para os sentidos e a consciência, junto a um outro em que esse algo é latente, mas pode reaparecer; isto é, a coexistência de percepção e lembrança, ou, de modo mais geral, a existência de processos psíquicos inconscientes ao lado dos conscientes. Pode-se dizer que o espírito de uma pessoa ou uma coisa reduz-se, em última análise, à sua capacidade de ser lembrada ou imaginada, quando é subtraída à percepção.

(p.95)

A alma animista reúne disposições da atividade psíquica consciente e a inconsciente. Sua fuidez e mobilidade, sua capacidade de abandonar o corpo, de apoderar-se duradoura ou provisioramente de outro corpo, são características que lembram inconfundivelmente a natureza da consciência. Mas a forma como se mantém oculta por trás da personalidade manifesta lembra o inconsciente. Hoje em dia não mais atribuimos imutabilidade e indestrutibilidade aos processos conscientes, e sim aos inconscientes.
Já dissemos que o animismo é um sistema de pensamento, a 1ª teoria completa do universo, e agora vamos extrair certas conclusões da abordagem psicanalítica de tal sistema. A experiência de cada dia nos mostra as principais características do sistema. Sonhamos à noite e aprendemos a interpretar o sonho de dia. O sonho pode, sem negar a sua natureza, parecer confuso e desconexo; pode também, ao contrário, imitar a ordem das impressões de uma vivência. Quando o submetemos à interpretação, vemos que a disposição irregular, e desigual de seus componentes é algo irrelevante para a sua compreensão. O essencial nele são os pensamentos oníricos, estes sim, dotados de sentido, coerentes e ordenados. Mas sua ordem é bastante diversa da que lembramos no conteúdo manifesto do sonho. O nexo dos pensamentos oníricos é abandonado, e pode então ficar inteiramente perdido ou ser substituído pelo novo nexo do conteúdo onírico.

(p.96)

Aquilo em que o material dos pensamentos oníricos foi transformado pelo trabalho do sonho sofre uma nova influência, a assim chamada elaboração secundária, que claramente visa eliminar a falta de nexo e a incompreensibilidade resultantes do trabalho do sonho, em favor de um novo sentido. Este novo sentido alcançado pela elaboração secundária já não é mais o sentido dos pensamentos oníricos.
A elaboração secundária do produto do trabalho do sonho é um exemplo valioso  da natureza e das exigências de um sistema. A marca mais distintiva de um sistema vem a ser, então, que cada um dos seus produtos permite acharmos duas motivações, uma baseada nas premissas do sistema e uma oculta, real.

(p.98)

Retomando ao sistema animista, podemos concluir, pelos conhecimentos que adquirimos de outros sistemas psicológicos, que também entre os primitivos a superstição não é necessariamente a única ou a verdadeira motivação de um costume ou preceito, e que ela não nos subtrai à obrigação de buscar os motivos ocultos dos mesmos. Sob o domínio de um sistema animista é inevitável que todo preceito e toda atividade tenham uma justificação sistemática, que hoje denominamos supersticiosa. Superstição, como angustia, sonho ou demonio, é uma das noções psicológicas provisórias que se dissolveram com a investigação psicanalítica.
Vendo-se a repressão dos instintos como uma medida do grau de cultura alcançado, deve-se admitir que também no sistema animista houve progressos e desenvolvimentos que são injustamente menosprezados, devido à sua motivação supersticiosa.

(p.101)

Volta ao conceito de totemismo que é um sistema que, em certos povos primitivos da Austrália, América e África, tem o papel de uma religião e fornece a base da organização social. Sabemos que em 1869 McLenann despertou interesse geral para os fenômenos do totemismo ao expressar a suposição de que grande número de usos e costumes, em diferentes sociedades antigas e modernas, seriam resíduos de uma época totêmica. Desde então a ciência  admitiu plenamente a importância do totemismo.
Cita o trabalho de Reinach que esboça 12 características do totemismo, como que um catecismo da religião totêmica. Nesta página cita 3 das 12.

(p.102)

Nesta página cita da 4 à 12. Freud diz que esse catecismo da religião totêmica pode ser avaliada apenas quando se leva em consideração que Reinach incluiu nele todos os indícios e vestígios com base nos quais se pode inferir que houve um sistema totêmico. A peculiar atitude desse autor em relação ao problema mostra-se no fato de que, em razão disso, ele negligencia em alguma medida os traços essenciais do totemismo.

(p. 103)

A fim de obter uma ideia precisa das características do totemismo, Freud voltará seus olhos para James G. Frazer, que se dedicou ao tema em 4 volumes.

(p.104)

Um totem, segundo Frazer: é uma classe de objetos materiais que o selvagem olha com respeito supersticioso, acreditando que entre ele e todo membro daquela classe há uma relação intima e especial [...] O vinculo entre um homem e um totem é mutuamente benéfico, o totem o protege e ele mostra sua consideração pelo totem de maneiras diversas, não o matando, se for animal, e não o cortando ou colhendo, se for uma planta. Á diferença de um fetiche, um totem nunca é um indivíduo isolado, mas uma classe de objetos, geralmente uma espécie de animais ou de plantas [...]
Os totens são de três tipos, no mínimo: o totem do clã, como a um clã inteiro, e transmitido de uma geração a outra por herança; o totem do sexo, comum a todos os homens ou a todas as mulheres de uma tribo, com a exclusão do outro sexo; o totem individual, que pertence a um único indivíduo e não passa para seus descendentes.



(p.105)

"O totem do clã é reverenciado por um grupo de homens e mulheres que dão a si mesmos o nome de totem, acreditam ser do mesmo sangue, descendentes de um ancestral comum, e são ligados entre si por obrigações comuns e por uma fé comum no totem. O totemismo é, assim, tanto um sistema religioso como social. No aspecto religioso consiste nas relações de respeito e proteção mútuos entre um homem e seu totem; no aspecto social consiste nas relações dos membros do clã entre si e com os homens dos outros clãs.Na história posterior do totemismo, esses dois lados, o religioso e o social, tendem a se separar; às vezes o sistema social sobrevive ao religioso; e, por sua vez, a religião às vezes tem traços do totemismo, em países onde o sistema social baseado no totemismo desapareceu."

Em sua descrição do totemismo como sistema religioso, Frazer diz que os membros de um clã assumem o nome do totem e normalmente acreditam que dele descendem. A consequência disso é que não caçam, não matam e não comem o animal totêmico, e, se ele é outra coisa que não um animal, privam-se de qualquer outra utilização do totem. As proibições de matar e de comer o totem não são os únicos tabus a ele relativos; às vezes também é proibido tocá-lo, e até olhar para ele.

(p.107)

O aspecto social do totemismo expressa-se, antes de tudo, num mandamento rigoroso e numa restrição enorme. Os membros de um clã são irmãos e irmãs, comprometidos a ajudar-se e proteger-se mutuamente. Os laços do totem são mais fortes que os laços de família no nosso sentido; não coincidem com estes, pois a transmissão do totem se dá, via de regra, pela linhagem da mãe, e originalmente a linhagem do pai talvez nem fosse reconhecida.
A restrição tabu correspondente é a proibição de membros do mesmo clã casarem ou terem relações sexuais entre si. Eis o célebre e misterioso corolário do totemismo, a exogamia.

(p.108)

O conceito de totem influi decisivamente na subdivisão e organização da tribo. Se buscarmos uma caracterização do totemismo original, penetrando por tudo que seria desenvolvido ou abrandamento posterior, obteremos os seguintes traços essenciais: Originalmente os totens eram apenas animais, eram tidos como os ancestrais dos diferentes clãs. O totem transmitia-se apenas pela linha materna; era proibido matar o totem; era proibido aos membros do totem manter relações sexuais entre si.

(p.110)

Tudo é enigmático no totemismo; as questões decisivas são as que concernem à origem da descendência do totem, dos motivos da exogamia e da relação entre as duas, a organização totêmica e a proibição do incesto. A compreensão deve ser, ao mesmo tempo, histórica e psicológica; deve informar em que condições desenvolveu-se essa instituição peculiar e a que necessidades psíquicas do ser humano ela dá expressão.
Freud diz que há variedade de pontos de vista a partir dos quais se buscou responder a essas questões, e com a divergência das opiniões dos especialistas no tema.
Uma suposição natural é de que aprenderíamos a natureza do totemismo e da exogamia se nos aproximássemos das origens de ambas as instituições, mas conforme alerta Andrew Lang, os povos primitivos não conservaram as formas originais das instituições.

(p.111)

Entre as tentativas de explicação apresentadas, algumas já parecem de antemão inadequadas. São demasiadamente racionais e não atentam para o caráter emocional das coisas a serem explicadas. Outras se baseiam em pressupostos que a observação não confirma; e ainda outras recorrem a um material que seria melhor submeter a outra interpretação.
A questão da gênese do totemismo pode ser assim formulada: como chegaram os homens primitivos a tomar os nomes de animais, plantas e objetos inanimados?

(p. 112)

Freud divide em três grupos as teorias que foram publicadas sobre a gênese do totemismo.
O primeiro são das teorias nominalistas. Garcilaso de la Vega, no século XVII, já teria explicado o que sabia do totemismo pela necessidade dos clãs de se distinguirem uns dos outros através de nomes. O mesmo pensamento surge séculos depois com A. Keane. Max- Muller exprimiu a mesma opinião.

(p.113)

Uma objeção que parece incontestável a essa derivação dos nomes de totens  dos nomes de indivíduos foi feita por Fison. Ele mostra que o totem é sempre a marca de um grupo, jamais de uma pessoa. Mesmo que fosse diferente, que o totem fosse originalmente o nome de um indivíduo, este não poderia nunca passar para os filhos, dado o sistema de herança materna.

(p.114)

As teorias até agora mencionadas são insatisfatórias. Explicam talvez o fato de os clãs primitivos terem nomes de animais, mas de modo nenhum o significado que essa atribuição de nomes adquiriu para eles, o sistema totêmico. A teoria desse grupo que mais merece atenção é a de Andrew Lang, de 1903.
Lang acredita ser indiferente, em princípio, de que modo os clãs adotaram nomes de animais. Suponha-se, apenas, que um dia lhes veio à consciência que os tinham, e que não sabiam explicar a si mesmos de onde vinham. A origem desses nomes foi esquecida. Então eles buscariam, através de especulação, elucidar aquilo para si mesmo, e, dadas as suas convicções sobre a importância dos nomes, chegariam necessariamente a todas as ideias do sistema totêmico. Para os primitivos não são algo indiferente e convencional, mas algo essencial e pleno de sentido. Ter o mesmo nome de um animal deve ter levado os primitivos a supor um laço misterioso e significativo entre eles e aquela espécie animal. Uma vez admitido esse parentesco, graças à identidade de nomes, deles resultariam, como consequências diretas do tabu do sangue, todos os preceitos totêmicos, incluindo a exogamia.

(p.115)

Segundo Lang: apenas essas 3 coisas - o nome de um grupo animal de origem desconhecida; a crença numa conexão transcendental entre todos os portadores do mesmo nome, humanos e animais; e a crença nas superstições de sangue- eram necessárias para fazer surgir todos os credos e práticas totêmicas, incluindo a exogamia.
A explicação de Lang se dá em dois tempos. Ela deriva o sistema totêmico, por via da necessidade psicológica, da existência dos nomes de totens, sob o pressuposto de que a origem da denominação foi esquecida. A outra parte da teoria busca esclarecer a origem desses nomes. Essa outra parte da teoria de Lang não se afasta essencialmente daquelas que chamei de nominalistas. A necessidade prática de diferenciação obrigou os clãs a adotar nomes, por isso aceitaram os nomes que cada um recebia dos outros. Esse "denominação a partir de fora" é a peculiaridade da construção de Lang. O fato de os nomes assim produzidos serem tomados de animais não é de surpreender e não era visto necessariamente como xingamento ou escárnio pelos primitivos.

(p.116)

O segundo grupo é o das teorias sociológicas. Cita a concepção que permea a obra de E. Durkheim, em que o totem é o representante visível da religião social desses povos. Ele encarna a comunidade, que é o verdadeiro objeto da adoração. Freud diz que outros autores buscaram um fundamento mais preciso para essa participação dos instintos sociais na formação das instituições totêmicas e cita A. C. Haddon. Ele supôs que todo clã primitivo vivia originalmente de uma espécie determinada de animal ou planta, talvez praticasse também o comércio com esse alimento e o passasse para outros clãs em escambo. Era inevitável, dessa forma, que o clã se tornasse conhecido pelo nome do animal que tinha tamanha importância para ele.
As objeções a essa teoria afirmam que tais condições de alimentação não se acham em nenhum povo primitivo, e provavelmente jamais existiram. Os selvagens seriam onívoros, e tanto mais quanto mais baixa a sua condição.

(p.117)

A 1ª das 3 teorias que Frazer formulou sobre o totem era psicológica. A segunda nasceu sob a impressão produzida pela publicação de dois pesquisadores sobre os nativos da Austrália Central [Spencer e Gillen].
Spencer e Gillen descreveram num grupo de tribos, a chamada nação arunta, uma série de instituições, usos e crenças características, e Frazer acompanhou seu julgamento de que essas peculiaridades seriam traços de um estado primordial e poderiam informar sobre o sentido primeiro e verdadeiro do totemismo. Freud cita 4 peculiaridades na tribo arunta.
Dois fatores parecem ter induzido Frazer a pensar que as instituições dos aruntas são a mais antiga forma de totemismo. 1º, a existência de certos mitos, que afirmavam que os ancestrais dos aruntas se alimentavam regularmente do seu totem e não se uniam com outras mulheres que não as de seu totem. 2º, a aparente irrelevância do ato sexual em sua teoria da concepção.

(p.118)

Ao basear sua apreciação do totemismo na cerimônia do intichiuma, Frazer enxergou o sistema totêmico sob uma luz inteiramente nova, como organização puramente prática para atender às necessidades mais naturais do ser humano. O sistema era simplismente cooperative magic em grande escala. Os primitivos formaram, por assim dizer, uma agremiação mágica de produção e consumo.

(p.119)

Os aruntas parecem ser, na verdade, as mais desenvolvidas das tribos australianas e representar antes um estágio de dissolução do que o início do totemismo.
Começa a falar do 3º grupo, as teorias psicológicas. A 1ª teoria psicológica de Frazer baseava-se na crença numa arma externa. O totem devia representar um lugar seguro de refúgio para a alma, no qual ela é depositada para escapar aos perigos que a ameaçam.

(p.120)

Se o primitivo abrigava sua alma no totem, era ele mesmo invulnerável e, naturalmente, evitava ferir o portador de sua alma. Mais tarde Frazer abandonou essa teoria de que o totemismo vem da crença em almas. Ao tomar conhecimento das observações de Spencer e Gillen, propôs a teoria sociológica mas logo achou que o motivo de que fazia derivar o totemismo  era racional demais, e que havia pressuposto uma organização social complicada demais para ser considerada primitiva. As associações cooperativas mágicas pareceram-lhe frutos tardios, em vez de germens do totemismo. Buscou um fator mais simples para com ele relacionar a gênese do totemismo. Esse fator original ele encontrou na singular teoria da concepção dos aruntas.
Os aruntas eliminam o nexo entre a concepção e o ato sexual. Quando uma mulher se sente grávida, é porque um dos espíritos que aguardam o renascimento, entrou em seu corpo e dela nascerá. Esse filho tem o mesmo totem de todos os espíritos que aguardam naquele lugar. Essa teoria da concepção não pode explicar o totemismo, já que pressupõe o totem. Mas se recuamos um pouco mais e supomos que a mulher acreditou que o animal, a planta, a pedra, o objeto que ocupou sua fantasia no instante em que sentiu grávida, nela realmente penetrou e dela nascerá em forma humana, então a identidade de um individuo com o seu totem seria realmente justificada pela crença da mãe, e todos os outros mandamentos do totem, excetuando a exogamia, poderiam facilmente decorrer disso. O indivíduo se recusaria a comer desse animal, dessa planta, porque estaria comendo a si mesmo. Mas de vez em quando seria levado a fruir cerimoniosamente do seu totem, pois assim poderia reforçar a identificação com o totem, que é o essencial no totemismo.

(p.121)

A derradeira fonte do totemismo seria, então, a incerteza dos selvagens quanto ao processo pelo qual homens e animais se reproduzem. Tal ignorância deve ser favorecida pelo longo intervalo entre o ato da fecundação e o nascimento da criança. Por isso o totemismo é uma criação do espírito feminino, não do masculino. Suas raízes estão nos caprichos da mulher grávida.
A principal objeção à terceira teoria de Frazer é a mesma que foi apresentada contra a segunda, a sociológica. Os aruntas parecem ter se distanciado bastante dos primórdios do totemismo. Sua negação da paternidade não parece decorrer de uma ignorância primitiva; em alguns aspectos, inclusive, eles têm a herança pela via paterna. Eles parecem ter sacrificado a paternidade a um tipo de especulação, a fim de venerar os espíritos ancestrais.

(p. 122)

Outra teoria psicológica foi proposta por G. Wilken. Ela faz uma relação entre o totemismo e a transmigração da alma.
Outra teoria sobre o totemismo é defendida por etnólogos americanos como Franz Boas e C. Hill-Tout. Ela parte de observações feitas em clãs totêmicos indígenas e afirma que o totem é originalmente o espírito protetor de um ancestral, que este adquiriu num sonho e transmitiu para os descendentes.
Quanto à ultima teoria psicológica, enunciada por Wundt, dois fatos são para ele decisivos: primeiro, o objeto totêmico original e mais difundido é o animal; e segundo, os primeiros animais totêmicos coincidem com os animais-almas. Animais-almas prestam-se a serem tidos como os portadores da alma que abandona o corpo, devido à sua grande mobilidade, sua capacidade de voar e outras peculiaridades que causam surpresa e aversão. Assim, para Wundt o totemismo vai dar diretamente na crença em almas ou animismo.


(p. 123)

A posição de um autor ante os problemas da exogamia está relacionada à adoção desta ou daquela teoria sobre o totem. Algumas dessas explicações dispensam qualquer nexo com a exogamia, de modo que as duas instituições são totalmente separadas. Duas concepções aqui se defrontam: uma mantém a visão original de que a exogamia é parte essencial do sistema totêmico, a outra nega essa vinculo e crê na coexistência fortuita dos dois traços das mais antigas culturas. Em seus últimos trabalhos, Frazer defendeu resolutamente o 2º ponto de vista.

(p. 124)

De modo contrário, alguns autores vieram a enxergar na exogamia a consequência necessária das concepções totêmicas fundamais. Durkheim expôs em seus trabalhos como o tabu ligado ao totem acarretaria a proibição de usar uma mulher do mesmo totem para relações sexuais. A. Lang, que nisso está de acordo com Durkheim, acha inclusive que a proibição de ter mulheres do mesmo clã requer a interdição do sangue para vigorar.
Quanto à sucessão cronológica, a maioria dos autores tende à opinião de que o totemismo é a instituição mais velha, que a exogamia lhe sobreveio bem mais tarde.
Freud destaca que entre as teorias que buscam explicar a exogamia de forma independente do totemismo, serão destacadas aquelas que esclarecem as diferentes atitudes ante o problema do incesto.
McLennan inferiu a existência da exogamia, engenhosamente, dos vestígios de costumes que indicavam a prática do rapto de mulheres. Ele supôs que havia sido comum em tempos primevos obter a mulher numa tribo estrangeira. Buscou o motivo para esse hábito da exogamia na falta de mulheres das tribos primitivas.

(p.125)

Na teoria de McLennan permanece inexplicado por que os homens da tribo tornariam inacessíveis a si mesmos as poucas mulheres de seu próprio sangue, e o modo como o problema do incesto é deixado de lado.
Em oposição a isso, outros estudiosos viram a exogamia como uma instituição destinada à prevenção do incesto.
É interessante notar que as primeiras restrições geradas pela introdução de classes matrimoniais afetaram a liberdade sexual da geração mais nova, ou seja, o incesto entre irmãos e entre filhos e mães, e que somente medidas posteriores suprimiram o incesto entre pais e filhas.
Fazer as restrições sexuais exogâmicas remontarem a uma intenção legisladora não ajuda a compreender o motivo pelo qual essas instituições foram criadas.

(p. 126)

Apesar do instinto de repulsa, o incesto não é um acontecimento raro nem mesmo na sociedade de hoje.
Westermarck afirmou, explicando o horror ao incesto, que entre pessoas que desde a infância vivem juntas há uma inata aversão ao intercurso sexual e este sentimento acha expressão natural no costume e na lei. Havelock Ellis, questiona o caráter instintual mas concorda essencialmente com a explicação. Westermarck vê uma inata aversão às relações sexuais com pessoas com as quais se partilhou a infância como uma representação psíquica do fato biológico de que a endogamia é prejudicial à espécie.

(p. 127)

Freud cita uma crítica de Frazer à afirmação de Westermarck: Não é fácil ver por que um instinto humano profundo necessitaria ser reforçado por uma lei. Não existe lei ordenando que os homens comam ou bebam, ou proibindo-os de pôr as mãos no fogo. Os homens comem e bebem e mantêm as mãos longe do fogo institivamente, por medo de penalidades naturais, não legais. A lei os proíbe apenas de fazer o que seus instintos os inclinam a fazer; seria supérfluo que a lei proibisse e punisse o que a natureza mesmo proíbe e pune. Assim, podemos tranquilamente supor que os crimes proibidos por lei são crimes que muitos homens tem propensão natural a cometer. Se não houvesse tal propensão não haveria tais crimes, e se tais crimes não fossem cometidos, que necessidade haveria de proibi-los? Portanto, em vez de supor, pela proibição legal do incesto, que há uma aversão natural ao incesto, deveríamos supor que há um instinto natural para ele, e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é nociva aos interesses gerais da sociedade.

(p.128)

A experiência da psicanálise mostra ser insustentável a suposição de uma inata aversão ao incesto. Ensina, pelo contrário, que os primeiros impulsos sexuais são de caráter incestuoso. Portanto a concepção do horror ao incesto como instinto inato deve ser abandonada. Não é diferente de outra explicação para a proibição do incesto: a hipótese de que os povos primitivos logo se deram conta dos perigos que a endogamia representava para a sua estirpe, e por isso adotaram intencionalmente a proibição. São várias as objeções a essa tentativa de explicação[Durkheim]. Seria absurdo atribuir a essas criaturas descuidadas, que viviam apenas o instante, motivos higiênicois e eugênicos que mal são considerados na cultura de hoje. É preciso objetar, enfim, que a proibição da endogamia por motivos práticos de higiene, como um fator debilitante da raça, parece inadequada para explicar a aversão que a nossa sociedade demonstra pelo incesto.

(p. 129)

Não conhecemos a origem do horror ao incesto e não sabemos sequer que direção tomar, se é sociológica, biológica ou psicológica. Freud resolve mencionar uma tentativa de elucidar a gênese do horror ao incesto através de uma explicação histórica através de uma hipótese de Charles Darwin sobre o estado social primevo do homem. Ele deduziu, dos hábitos de vida dos macacos superiores, que também o homem viveu originalmente em pequenas hordas, dentro das quais o ciúme do macho mais velho e mais forte impediu a promiscuidade. “Se olharmos bastante para trás no curso do tempo, (…) julgando pelos hábitos sociais do homem tal como hoje existe (…) a concepção mais provável é de que o homem primevo originalmente viveu em pequenas comunidades, cada um com quantas esposas podia obter e sustentar, que ele ciumentamente guardaria dos outros homens. Ou pode ter vivido sozinho com várias esposas, como o gorila; pois todos os nativos concordam em que apenas um macho adulto é enxergado num bando; quando o macho jovem cresce, há uma disputa pelo domínio, e o mais forte, matando ou expulsando os outros, estabelece-se como o líder da comunidade. Os machos jovens, vagando após serem expulsos, impediriam, quando enfim encontrassem uma parceira, uniões consanguíneas muito próximas no interior da mesma família.”

(p. 130)

Atkinson deve ter sido o 1º a notar que essas condições da horda primitiva de Darwin impunham praticamente a exogamia dos homens jovens. Cada um desses jovens expulsos podia fundar uma horda semelhante, na qual vigorasse a mesma proibição de atos sexuais motivada pelo ciúme do chefe, e no curso do tempo essas circunstâncias resultariam na regra, agora consciente em forma de lei: nada de relações sexuais entre companheiros de horda. Após o estabelecimento do totemismo a regra teria se transformado em: nada de relações sexuais no interior do totem.
Andrew Lang aderiu a essa explicação da exogamia. Mas no mesmo livro ele defende a outra teoria (de Durkheim), que vê a exogamia como consequência das leis do totem. Não é nada fácil juntar as duas concepções; no primeiro caso, havia exogamia antes do totemismo; no segundo, ela seria consequência dele.

(p. 131)

Há muita semelhança entre a relação das crianças com os animais e a dos primitivos. A criança não mostra ainda nenhum traço da arrogância que leva o homem adulto civilizado a desenhar uma fronteira nítida entre a sua natureza e a dos outros animais. Sem hesitação, a criança vê o animal como seu igual; no franco reconhecimento de suas necessidades sente-se talvez mais próxima do animal que da pessoa adulta, que provavelmente lhe parece um enigma.
Freud fala da zoofobia, uma das mais frequentes enfermidades psico-neuróticas das crianças. Depois fala de autores que escreveram e analisaram sobre o tema até a página 135.

(p.136)

Freud destaca dois traços como sendo valiosos pontos de contato com o totemismo: a completa identificação com o animal totêmico e a atitude emocional ambivalente em relação a ele. Por essas observações nos sentimos autorizados a introduzir, na fórmula do totemismo - no caso do homem -, o pai no lugar do animal totêmico. Percebemos, então, que com isso não damos um passo novo ou particularmente ousado. O 1º resultado de nossa substituição é bastante notável. Se o animal totêmico é o pai, o teor dos dois principais mandamentos do totemismo – os dois preceitos que constituem seu núcleo, não matar o totem e não ter relações sexuais com uma mulher do totem- coincide com os dois crimes de Édipo, que matou o pai e tomou a mãe por esposa, e com os dois desejos primordiais da criança, desejos cuja repressão insuficiente ou cujo redespertar forma o núcleo de talvez todas as psiconeuroses.

(p. 137)

Freud diz que agora examinará uma peculiaridade do sistema totêmico – ou, poderíamos dizer, da religião totêmica- que ainda não pode ser considerada. Ele procura retirar de um livro de R. Smith as afirmações sobre origem e significado do ritual de sacrifício. R. Smith informa que o sacrifício no altar foi o elemento essencial no ritual das religiões antigas. Tem o mesmo papel em todas as religiões, de modo que devemos relacionar sua origem a causas bastante gerais, que em toda parte atuavam da mesma forma.
(p.138)

O sacrifício significava originalmente algo diverso do que outras épocas vieram a designar com o termo: a oferenda à divindade, para reconciliar-se com ela ou ganhar seu favor. Tudo indica que primeiramente o sacrifício não foi senão um ato de sociabilidade, uma comunhão dos crentes com seu deus. Comidas e bebidas eram dadas em sacrifício. Não há dúvidas de que os animais são os sacrifícios mais antigos e que já foram os únicos. Sabe-se, tomando por base vestígios da linhagem, que a parte do sacrifício destinada ao deus era considerada inicialmente o verdadeiro alimento. Com a progressiva desmaterialização do ser divino, essa ideia tornou-se repugnante; ela foi evitada, concedendo-se à divindade apenas a parte liquida da refeição.

(p. 139)

Portanto, a mais antiga forma de sacrifício, mais velha que o uso do fogo e o conhecimento da agricultura, foi o sacrifício animal, em que o deus e seus adoradores desfrutavam juntos a carne e o sangue. Era essencial que cada um dos participantes tivesse a sua parte da refeição.
Tal sacrifício era uma cerimônia pública, a festa de todo um clã. A religião era assunto de todos, o dever religioso era parte da obrigação social. Sacrifício e festividade coincidem em todos os povos, cada sacrifício traz consigo uma festa e nenhuma festa pode ser realizada sem sacrifício. A festa do sacrifício era uma oportunidade de elevar-se alegremente acima dos próprios interesses, de enfatizar os laços mútuos e com a divindade.
A força ética da refeição sacrificial pública baseavam-se em antiquíssimas concepções sobre o significado de comer e beber em companhia de outrem. Comer e beber com alguém era, ao mesmo tempo, um símbolo e um robustecimento do vínculo social e da adoção de obrigações recíprocas. A refeição sacrificial exprimia diretamente o fato de que o deus e adoradores são comensais, mas isso envolvia todas as suas outras relações.

(p.140)

Nas sociedades mais primitivas há apenas um vínculo que une incondicionalmente e sem exceção: o da comunidade de clã (kinship). Os membros dessa comunidade respondem solidariamente uns pelos outros, um kin é um grupo de pessoas cujas vidas se acham tão ligadas, que podem ser vistas como partes de uma vida conjunta. Kinship significa, portanto, participar da substância comum.
Originalmente a refeição sacrificial era um banquete de parentes do mesmo clã, conforme a lei de que apenas parentes do mesmo clã comiam juntos. A kinship é mais velha do que a vida familiar; as famílias mais antigas de que temos conhecimento compreendem pessoas de diferentes associações de parentesco.

(p.141)

Volta para o animal sacrificial. Como vimos, não havia reunião do clã sem sacrifício animal, mas também não se abatia o animal fora dessas ocasiões solenes. Não há a menor dúvida, diz R. Smith, de que todo sacrifício foi originalmente uma cerimônia do clã, e que a morte de uma vítima era uma daquelas ações proibidas para o indivíduo e justificadas apenas quando todo o clã assumia a responsabilidade. O animal do sacrifício era tratado como um membro do clã, a comunidade que sacrifica, o seu deus e o animal do sacrifício eram do mesmo sangue, membros de um único clã.
Com base em evidências, R. Smith identifica o animal do sacríficio com o animal totêmico. Havia duas espécies de sacrifícios na Antiguidade tardia, a dos animais domésticos, que ordinariamente eram também comidos, e sacrifícios extraordinários de animais que eram proibidos por serem impuros.

(p. 142)

Todos os animais são originalmente sagrados, sua carne é proibida e pode ser provada apenas em ocasiões solenes, com a participação de todo o clã. Matar o animal equivale a derramar sangue do clã, e tem de ocorrer sob as mesmas cautelas e garantias contra recriminações.

(p. 143)

O mistério sagrado da morte sacrificial se justifica pela consideração de que apenas dessa maneira pode ser criado o vínculo sagrado que une os participantes entre si e com seu deus.
Essa vínculo não é outra coisa senão a vida do animal sacrificial, que habita em sua carne e seu sangue e que é transmitida a todos os participantes através da refeição sacrificial.
Quando surgiu a ideia de propriedade privada, o sacrifício foi entendido como um presente à divindade, como transferência de propriedade do homem para o deus. Nas épocas mais antigas, o animal sacrificial mesmo era sagrado e sua vida era intocável; podia ser tirada apenas com a participação e responsabilidade de todo o clã e na presença do deus, para fornecer a substância sagrada cujo consumo garantia aos membros do clã a identidade essencial de uns com os outros e com a divindade. O sacrifício era um sacramento, o próprio animal sacrificial era um membro do clã. Ele era, de fato, o velho animal totêmico, o próprio deus primitivo, cuja morte e absorção permitia aos membros do clã reavivar e garantir sua semelhança com ele.

(p. 144)

Smith tirou a conclusão de que a matança e devoração periódica do totem, em épocas anteriores à adoração de divindades antropomórficas, teria sido um importante elemento da religião totêmica.

(p. 146)

A psicanálise nos revelou que o animal totêmico é de fato o sucedâneo do pai, e com isso harmoniza-se a contradição de que normalmente é proibido matá-lo, mas o assassínio torna-se ocasião de festa, de que o animal é morto e, no entanto, pranteado. A postura afetiva ambivalente, que ainda hoje caracteriza o complexo paterno em nossas crianças e frequentemente prossegue na vida adulta, se estenderia também ao sucedâneo do pai, o animal totêmico.

(p. 147)

Se agora juntamos a concepção psicanalítica do totem com o fato do banquete totêmico e a hipótese darwiniana sobre o estado primevo da sociedade humana, há a possibilidade de uma compreensão mais profunda, a perspectiva de uma hipótese que talvez pareça fantástica, mas que oferece a vantagem de produzir uma insuspeitada unidade com séries de fenômenos até então separados. É possível que uma tenha se desenvolvido da outra? E de que forma, então?
Recorrendo à cerimônia da refeição totêmica, podemos dar uma resposta. Certo dia, os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai, assim terminando com a horda primeva. Unidos, ousaram fazer o que não seria possível individualmente. O fato de haverem também devorado o morto não surpreende, tratando-se de canibais. Sem dúvida, o violento pai primevo era o modelo temido e invejado de cada um dos irmãos.

(p. 148)

No ato de devorá-lo eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropria-se de parte de sua força. A refeição totêmica, talvez a 1ª festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais, a religião.

(p. 150)

Os dois tabus do totemismo, com que tem início a moralidade, não são de mesmo valor psicológico. Apenas um, aquele que poupa o animal totêmico, baseia-se inteiramente em razões afetivas; o pai foi eliminado, não havia como remediar isso. Mas o outro, a proibição do incesto, tinha uma sólida fundamentação prática. A necessidade sexual não une os homens, elas os divide.
Já o outro tabu, que protege a vida do animal totêmico, liga-se à reivindicação do totemismo, de ser considerado o 1º ensaio de uma religião. Se à sensibilidade dos filhos o animal pareceu o substituto óbvio e natural do pai, o tratamento que se viram obrigados a lhe dispensar exprimia mais que a necessidade de exteriorizar seu arrependimento.

(p. 151)

Com o sucedâneo do pai pôde-se fazer a tentativa de mitigar o vivo sentimento de culpa , de obter uma espécie de reconciliação com o pai. O sistema totêmico foi, digamos, um contrato com o pai, em que este concedia tudo o que a fantasia da criança podia dele esperar, proteção, cuidado, indulgência, em troca de compromisso de honrar sua vida, ou seja, não repetir contra ele o ato que havia destruído o pai real. Havia também uma tentativa de justificação no totem: Se o pai nos tivesse tratado como o totem, nós jamais teríamos caído na tentação de matá-lo. Desse modo, o totemismo contribuiu para atenuar as coisas e fazer esquecer o acontecimento ao qual devia sua gênese.
Nisso criaram-se características que foram determinantes para a natureza da religião. A religião totêmica desenvolveu-se a partir da consciência de culpa dos filhos, como tentativa de acalmar esse sentimento e de apaziguar o pai ofendido, mediante a obediência a posteriori. Todas as religiões subsequentes mostram-se como tentativas de solução do mesmo problema, que variam conforme o estágio cultural em que são empreendidas e os caminhos que tomam, mas são todas reações, partilhando uma só meta, ao mesmo grande evento, com que teve início a cultura e que, desde então, não permitiu que a humanidade sossegasse.
Um outro traço, que a religião conserva fielmente, já aparecia então no totemismo. A tensão da ambivalência era grande demais para ser contrabalançada por algum dispositivo. Nota-se de toda maneira, que a ambivalência intríseca ao complexo paterno continua também no totemismo e nas religiões em geral. A religião do totem não apenas compreende as manifestações de arrependimento e as tentativas de conciliação, mas serve também à lembrança do triunfo sobre o pai.

(p. 152)

A satisfação por esse triunfo leva a instituir a festa de recordação que é a refeição totêmica, na qual as restrições da obediência a posteriori são deixadas de lado, e torna obrigação repetir novamente o crime do parricídio no sacrifício do animal totêmico, sempre que a colheita daquele ato, a apropriação dos atributos do pai, ameaça desaparecer graças às variáveis influências da vida. Não nos surpreende constatar que também o elemento de revolta do filho reaparece em formações religiosas posteriores, muitas vezes nos mais curiosos disfarces e rodeios.

(p. 153)

Contrariando as novas concepções do sistema totêmico e apoiando-se nas antigas, a psicanálise nos leva a defender uma íntima relação e uma origem silmutânea para o totemismo e a exogamia.
Freud não tentará descrever a evolução posterior das religiões, desde sua origem no totemismo até seu estado atual. Apenas seguirá duas linhas: o tema do sacrifício e a relação do filho com o pai.
R. Smith nos mostrou que a antiga refeição totêmica retorna na forma original do sacrifício. O significado do ato é o mesmo: a sacralização pela participação na refeição comum. Permanece também a consciência de culpa, que pode ser aplacada apenas pela solidariedade de todos os participantes. Coisa nova é a divindade do clã, em cuja suposta presença é realizado o sacrifício. Como chega o deus a essa situação, em que originalmente não estava?
A resposta poderia ser que, entretanto – não se sabe de onde-, apareceu a idéia de deus, sujeitando a si toda a vida religiosa, e a refeição totêmica, como tudo o mais que quisesse subsistir, teve que se integrar ao novo sistema. Mas o exame psicanalítico do indivíduo mostra, com toda a ênfase, que para cada pessoa o deus é modelado no pai, que a relação pessoal com Deus depende de sua relação com o pai carnal, que oscila e se transforma com ela, e que Deus, no fundo, nada mais é que um pai elevado.

(p. 154)

Se a psicanálise merece alguma atenção, o componente paterno na ideia de Deus deve ser muito importante, sem prejuízo de todas as demais origens e significações de Deus, sobre as quais a psicanálise não pode lançar nenhuma luz. Então o pai seria representado duas vezes na situação do sacrifício primitivo, como deus e depois como animal totêmico, e, mesmo admitindo a pouca variedade das soluções psicanalíticas, devemos perguntar se isto é possível e que significado pode ter.
Sabemos que existem várias relações entre o deus e o animal sagrado (totem, vítima sacrificial): a cada deus é consagrado habitualmente um animal, com frequência vários; em alguns sacrifícios particularmente sagrados, os místicos, juntamente o animal consagrado a deus lhe era sacrificado; o deus costumava ser adorado na forma de um animal, ou, visto de outra maneira, os animais foram alvo de adoração divina muito depois da época do totemismo; nos mitos o deus transforma-se frequentemente num animal, muitas vezes no que lhe é consagrado. Seria natural supor que o próprio deus é o animal totêmico, que se desenvolveu a partir deste num estágio posterior do sentimento religioso. Mas a consideração de que o totem nada mais é que um sucedâneo do pai nos dispensa de toda discussão ulterior. De modo que ele pode ser a primeira forma de sucedâneo do pai, e o deus, uma posterior, em que o pai readquire sua configuração humana.

(p. 156)

O pai se acha presente duas vezes na cena do sacrifício ante o deus do clã, como deus e como animal do sacrifício totêmico. Freud nos diz que devemos tomar cuidado com as interpretações que buscam traduzi-la, de forma bidimensional, como uma alegoria, esquecendo a estratificação histórica. A dupla presença do pai corresponde aos dois significados da cena, que se sucederam cronologicamente. A atitude ambivalente perante o pai encontrou aí uma expressão plástica, e assim também a vitória, no filho, dos sentimentos afetuosos sobre os hostis. A cena da derrota do pai, de sua maior humilhação, tornou-se aí o material para representar seu mais alto triunfo. A importância que o sacrifício adquiriu universalmente está no fato de que oferece ao pai a satisfação pela injúria sofrida, no mesmo ato em que perpetua a lembrança do malfeito.

(p. 157)

Na época seguinte, o animal perde sua natureza sagrada e o sacrifício perde seu vínculo com a cerimônia totêmica; torna-se uma simples oferenda à divindade, uma abnegação em favor do deus. O próprio deus é erguido tão acima dos homens que apenas pela mediação do sacerdote se pode lidar com ele. Ao mesmo tempo, reis divinos surgem na ordenação social, transpondo o sistema patriarcal para o Estado. Os filhos submetidos aproveitaram a nova situação para aliviar mais ainda sua consciência de culpa. O sacrifício, tal como é então, acha-se inteiramente fora de sua responsabilidade. O próprio deus o exigiu e prescreveu.

(p. 158)

Seria equivocado acreditar, porém, que nesse período de renovada autoridade paterna estejam completamente silenciados os impulsos hostis que são próprios do complexo paterno. Pelo contrário, nas primeiras fases de domínio dos dois novos sucedâneos do pai, os deuses e os reis, encontramos as mais energéticas expressões da ambivalência característica da religião.

(p. 159)

No desenvolvimento posterior das religiões jamais desaparecem os dois fatores impulsionadores: a consciência de culpa do filho e sua rebelião. Toda tentativa de solução do problema religioso, de conciliação dos dois poderes psíquicos conflitantes vem a ser inútil, provavelmente sob a influência combinada de eventos históricos, transformações culturais e mudanças psiquícas internas.

(p. 160)

Freud fala da consciência de culpa e da penetração do cristianismo no mundo antigo.

(p. 161)

Freud fala da doutrina do pecado original  que é de origem órfica; foi conservada nos mistérios e deles passou para as escolas filosóficas da antiguidade grega. Freud também fala que no mito cristão, é certamente um pecado contra Deus-pai pois o sacrifício da própria vida- por jesus-, de acordo com a lei de talião, produz a reconciliação com Deus-pai, e o crime expiado não pode ser outro senão o assassinato do pai.

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Nossa visão acompanhou, através dos tempos, a identidade da refeição totêmica com o sacrifício animal, com o sacrifício humano teantrópico e com a eucaristia, percebendo em todas essas cerimônias o efeito do crime que tanto pesou sobre os homens, e do qual, ao mesmo tempo, eles tanto puderam se orgulhar. No fundo, a comunhão cristã é uma nova eliminação do pai, uma repetição do ato a ser expiado.

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Freud fugirá à tentação de evidenciar traços na mitologia e voltará seus olhos para um ensaio sobre a morte de Orfeu. Na história da arte grega há uma situação que mostra notáveis semelhanças com a cena de refeição totêmica identificada por R. Smith, e também dessemelhanças igualmente profundas.

(p. 164)

No complexo de Édipo reúnem-se os começos da religião, moralidade, sociedade e arte, em plena concordância com a verificação psicanalítica de que esse complexo forma o núcleo de todas as neuroses. Surge-me como uma surpresa que também esses problemas da vida psíquica dos povos permitam uma solução a partir de um único ponto concreto, que é a relação com o pai. Com frequência tivemos oportunidade de mostrar que a ambivalência afetiva no sentido exato, isto é, a coexistência de amor e ódio ao mesmo objeto, está na raiz de importantes instituições culturais. Nada sabemos sobre a origem dessa ambivalência. Podemos supor que é um fenômeno fundamental de nossa vida afetiva.

(p. 165)

Mas também a outra possibilidade parece-me digna de nota: que ela, originalmente estranha à vida afetiva, tenha sido adquirida pela humanidade no complexo paterno. Para concluir, ele faz algumas observações. Em 1º lugar, imaginou na base de tudo uma psique das massas, em que os processos psíquicos ocorrem tal como na vida psíquica individual. Supôs, principalmente, que a consciência de culpa por um ato persiste através de milênios e continua a influir em gerações que nada podiam saber desse ato. Supôs um processo afetivo, que pode ter se desenvolvido em gerações de filhos que foram maltratados pelo pai, estendendo-se por novas gerações que disso foram poupadas precisamente pela eliminação do pai.

(p. 167)

As primeiras prescrições e restrições morais da sociedade primitiva foram por nós concebidas como reações a um ato que deu a seus autores a noção de crime. Eles se arrependeram desse ato e decidiram que ele não poderia mais se repetir, e que sua execução não deveria trazer nenhuma vantagem. Essa criativa consciência de culpa não desapareceu entre nós. Nós a vemos atuando nos neuróticos, de forma associal, a fim de produzir novos preceitos morais, continuadas restrições, como penitência para os malfeitos cometidos e advertência para outros a cometer. Na base da consciência de culpa dos neuróticos se acham apenas realidades psíquicas, e não factuais. A neurose caracteriza-se, então, por colocar a realidade psíquica acima da factual, por reagir a pensamentos de forma tão séria como as pessoas normais reagem às coisas reais.

(p. 169)

Não é correto dizer que os neuróticos obsessivos defendem-se apenas da realidade psíquica de tentações e castigam-se por impulsos meramente sentidos. A analogia dos primitivos com os neuróticos se estabelece mais profundamente, então, se supomos que também naqueles a realidade psíquica, acerca de cuja configuração não há dúvida, inicialmente coincidiu com a realidade factual, que os primitivos realmente fizeram o que a evidência mostra que pretendiam.
Tampouco devemos deixar que o nosso juízo sobre os primitivos seja influenciado demasiadamente pela analogia com os neuróticos. Também há diferenças a serem tidas em conta. É certo que em ambos, inexistem as agudas distinções que traçamos entre pensamento e ação [associação com o homem subterrâneo de Dostoiesvski]. Mas o neurótico é inibido sobretudo no agir, nele o pensar substitui plenamente o fazer.
O primitivo não é inibido, o pensamento logo se converte em ato, nele o ato seria antes um substituto para o pensamento; por isso creio, sem reinvindicar definitiva certeza na decisão, que no caso em discussão é lícito supormos que no “no princípio foi o ato”. [associação com autor anarquista]


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