quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Resenha de "Mulheres na sala de aula", de Guacira Lopes


O texto de Guacira Lopes inicia-se citando Nísia Floresta, a “ mulher metida a homem”, que em pleno século XIX denunciava a condição de submissão das mulheres e reivindicava sua emancipação através da educação para contextualizar a concepção que se tinha de educação em tal contexto. A educação não era igual para as meninas e meninos, havia professores para os meninos e professoras para as meninas, e eles deveriam estudar em salas ou até turnos diferentes. Os meninos deveriam saber geometria e as meninas bordar e costurar, e o ensino de geometria causaria um salário desigual no futuro. Os professores por sua vez deveriam ter uma moral inabalável e inatacável, e as suas casas ambientes deveriam ser decentes e saudáveis.
A autora também chamará a nossa atenção para as concepções de educação feminina pelos imigrantes e ordens religiosas que se aproximavam em muito da dos luso-brasileiros. Contudo, em alguns grupos socialistas e anarquistas, se dava atenção às questões da educação feminina ligada à idéia de que com a instrução a mulher se libertaria. Enfim, as concepções e formas de educação das mulheres eram diversas e estabeleciam relações atravessadas por suas segmentações. Porém, parecia haver um consenso de que as mulheres deveriam ser educadas e não só instruídas, isto é, a formação de maior relevância seria a moral sólida e dos bons princípios já que seu destino era de esposa e mãe.
Segundo Guacira, as últimas décadas do século XIX apontam uma necessidade de educação para a mulher vinculando-a à modernização da sociedade, à higienização da família, à construção da cidadania dos jovens, a controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e trabalhadoras do país. A autora destaca que para muitos, a educação feminina não poderia estar desvinculada de uma sólida formação cristã e de uma moral religiosa que apontava uma representação das mulheres de Eva ou Maria, onde as jovens moças deveriam se espelhar na pureza da Virgem apelando assim para a missão da maternidade e para a manutenção da pureza feminina. Enfim, se criava um ideal feminino que implicava o recato e o pudor, a busca pela perfeição moral, a aceitação de sacrifícios, a ação educadora dos filhos e filhas. E que para outros ligados aos ideais positivistas e cientificistas, a educação feminina, ainda ligado à função materna e as concepções relativas à essência do que se entendia como feminino, deveria incorporar as ciências que tratavam das tradicionais ocupações femininas.
Guacira depois nos falará da criação das escolas normais. Estas instituições foram criadas para ambos os sexos, mas a atividade docente era exercida majoritariamente por homens, mas agora, em meados do XIX, as mulheres também se tornavam necessárias. As escolas normais passariam a formar mais mulheres do que homens, que começaram a procurar outros tipos de empregos e salários mais autos, acarretando assim numa feminização do magistério. Contudo, este processo não se deu sem posturas favoráveis ou contrárias. Para alguns, como Tito Livio de Castro, era uma insensatez entregar às mulheres despreparadas e de pouca inteligência a educação das crianças. Outros afirmavam que a mulher tinha por natureza uma inclinação para o trato das crianças, e, se o destino da mulher era a maternidade, bastaria pensar que o magistério representava a extensão da maternidade e era representado como uma atividade de amor, entrega e adoção. Tal discurso, segundo a autora, justificava a saída dos homens das salas de aula e legitimava a entrada das mulheres nas escolas. É a partir daí que se passam a ser associados ao magistério características tidas como tipicamente femininas: paciência, minuciosidade, afetividade, doação, e a reforçar a idéia de que o magistério era um sacerdócio e não uma profissão, constituindo a imagem das professoras como trabalhadoras dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras.
Com uma feminização do magistério, fazia-se supor que as escolas de meninos estariam sem mestres, e a solução seria permitir que as mulheres lhes dessem aulas, mas teria que salvaguardar a sexualidade dos meninos e das professoras que normalmente se vestiam de forma assexuada. Também para a mulher sair de casa, o que era um risco, o trabalho era só de um turno e transitório, para não afastar a mulher da vida domiciliar, dos deveres domésticos, da alegria da maternidade, da pureza do lar, o que de certa forma, contribuía para que os seus salários fossem baixos e complementares ao do marido que era o provedor da casa. Enfim, o casamento e a maternidade eram incompatíveis com a vida profissional feminina e o trabalho de modelo religioso de de metáfora materna porque exigia dedicação, disponibilidade, humildade-submissão, abnegação-sacrifício, só seria aceitável para as moças solteiras até o momento do casamento, ou para as mulheres que ficassem só. A incompatibilidade do trabalho com o casamento e a maternidade se justificava pois a condição de casada poderia resultar numa fonte de indagação das crianças e jovens sobre a vida afetiva e sexual da professora, num ambiente, que procurava negar a sexualidade. A sexualidade das professoras ainda podiam ser representadas como elas sendo homossexuais, pois as mulheres que tomassem iniciativas que contrariassem as normas, que fossem mais instruídas ou que ganhassem o seu próprio sustento eram percebidas como desviantes, como mulheres metidas a homem, como mulher-homem.
A autora tratará ainda da questão das instituições estarem voltadas para uma transformação das meninas/ mulheres em professoras. Assim, os arranjos físicos, do tempo e do espaço escolares, estão informando e formando como ser ou agir, enfim, institui em sua materialidade um sistema de valores, como ordem disciplina e vigilância. Uma série de rituais e símbolos, doutrinas e normas foram mobilizados para a produção dessas mulheres professoras. Ensinava-se um modo adequado de se portar e comportar, de falar, escrever e argumentar, que se constituíam num conjunto de critérios que elas carregariam para além da escola. As professoras tinham a responsabilidade de se manterem acima do comportamento comum, isto é, se viram obrigadas a um estrito controle sobre seus desejos, falas, gestos e atitudes e tinham na sociedade o fiscal e censor de suas ações.
No fim do século XIX, as professoras passam a aprender coisas relacionadas ao afeto, e que ficavam restritas ao lar, mas as escolas reelaboravam tais saberes e habilidades, que poderiam contribuir para a formação da moderna mestra e ser um estágio preparatório para o casamento e a maternidade. A profissão ainda mantinha laços com suas origens religiosas. Guacira ressaltará também o papel das mulheres como dirigentes de instituições leigas ou religiosas , onde assumiam o papel de uma mãe-zeladora de tudo e todos. Contudo, nas escolas públicas tal papel cabia ao homem que era referencia de poder e firmeza nas decisões.
O magistério se apresentava com a alternativa mais viável ao casamento e ser professora estava associada à imagem da mulher pouco graciosa, da solteirona retraída. Na parte sobre o jogo das representações, a autora afirma que as representações, que se constituíam e mudavam, de professoras tiveram um papel importante na construção da professora, fabricando professoras e dando sentido ao que era e ao que é ser professora. Portanto, é possível compreender que a moça que se achava feia e retraída percebia-se atraída para o magistério já que existia uma compreensão social de que ele era uma função adequada para mulheres e na aproximação dessa função à maternidade. Assim, para aquelas em que a maternidade parecia estar impossível, estariam cumprindo sua função feminina ao se tornarem, como professoras, mães espirituais de seus alunos. Todavia, a representação da professora solteirona é, então, adequada para justificar a completa entrega das mulheres à atividade docente, ao caráter de doação e de desprofissionalização da atividade. A professora solteirona também poderia ser representada como uma figura severa cuja afetividade estava escondida. As caricaturas retratam isto e representa-nas como mulheres sem atrativos físicos, quase bruxas, munidas de uma vara para apontar para o quadro-negro, de óculos. Tudo isso para retirar da mulher uma imagem de que é frágil e propensa aos sentimentos. Neste contexto, a professora tinha que evitar o mínimo de contato com os alunos. Mas, quando o discurso sobre a escola passa a valorizar um ambiente prazeroso, também a figura da professora passa a ser representada como sorridente e mais próximos dos alunos.
Ao longo do século XX, segundo Guacira, as professoras e normalistas foram se transformando e se constituindo educadoras, depois profissionais do ensino, para alguns tias, para outros, trabalhadoras da educação. Nas primeiras décadas do século eram chamadas de professorinhas e normalistas fazendo referência às jovens recém-formadas. Já o magistério primário já era então demarcado como um lugar de mulher. Com as teorias psicológicas e sociológicas, temos a representação da professora como educadora que fornecia apoio afetivo, emocional e intelectual à criança. Já na ditadura, havia a tendência de se substituir a mãe-espiritual pela da profissional do ensino, cujo profissional era imbuído de tarefas burocráticas, de ordem administrativa e de controle, com ação didática mais técnica, eficiente e produtiva. A reivindicação da profissionalização se constituía como uma forma das mulheres professoras lutarem por salários iguais aos dos homens. Esse argumento ia contra a concepção do magistério como extensão das atividade maternais. Mas de qualquer modo também haveria resistências a essa nova concepção. Por um lado, como reafirmação da afetividade e de sua importância central na atividade docente, muitos dos professores e professoras passam a utilizar “tia” para denominar professora, se por um lado aumentava as características familiares, por outro lado promoviam um anonimato da professora. Uma outra forma de resistência estaria se dando num processo de proletarização da categoria docente que estaria ligada na acentuada queda de salários, e os professores, iriam procurar buscar formas de lutas também semelhantes às dos operários, como os sindicatos, greves e manifestações públicas de maior visibilidade. Apesar dos sindicatos serem formados em grande maioria por mulheres, os homens também passariam a fazer parte dele. As greves são práticas sociais novas e a adesão ou não a essa forma de luta não se dá de modo fácil.

Para concluir, não se pode compreender a história de como as mulheres ocuparam as salas de aula sem notar que essa foi uma história que se deu também no terreno das relações de gênero e de relações sociais de poder. Assim, todos são ainda controlados e controladores capazes de resistir e de se submeter, e pensar as mulheres professoras apenas como subjugadas talvez empobreça demasiadamente sua história já que mesmo quando tentaram silenciá-las, elas foram capazes de engendrar discursos discordantes, construir resistências e subverter comportamentos. Construir uma história as avessas também significaria reduzir e idealizar as trajetórias daquelas professoras que foram revolucionárias. Assim, não houve uma homogeneização das mulheres professoras, se construindo por meio e em meio a discursos e práticas que elas acabaram por se produzir como professoras ideais e ou desviantes, como mulheres ajustadas e ou inadaptadas. Enfim, o magistério surgiu como sendo algo vocacional, sacerdotal. Chegar ao status de profissão foi uma luta contra os preconceitos que envolviam a mentalidade da época e o discurso que pensava a mulher unicamente com função gestora e do lar. Hoje em dia, ser professor ainda evoca tal concepção antiquada, mas sabemos que somos profissionais e que não fazemos isto por amor, mas, como desenvolvedores de uma atividade educativa para a formação crítica dos alunos e alunas. Enfim, este texto faz uma trajetória histórica de como surgiu a feminização do magistério até a sua concepção de profissionalização. 

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