quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A obrigatoriedade das temáticas africanas e indígenas na escola básica: algumas questões


Neste texto, trataremos de duas questões legais - as leis 10.639/03 e 11.645/08- que dizem respeito aos conteúdos históricos e normativas programáticas quanto ao currículo escolar de História. A lei 10.639 regulamenta a obrigatoriedade do ensino da tématica africana, e, a lei 11.645 torna obrigatório o ensino da temática indígena, nas escolas públicas e privadas para a educação básica. Vale ressalvar que não há nenhuma lei que trate da obrigatoriedade de algum tema histórico a não ser estas duas. Portanto, o professor tem uma autonomia para conseguir fugir da história europeizante e quadripartida. Vale ressalvar também que tais leis são uma forma política de tais movimentos étnicos de garantirem uma afirmação identitária frente ao exclusivismo que vinha e vem ocorrendo a estes perante ao conjunto da sociedade. Chamarei para dialogar as autoras Circe Bittencourt, Maria Bergamaschi e Junia Sales Pereira. Ambas são historiadoras e fazem uma importante reflexão sobre as questões de tais leis e alguns problemas quanto a recepção delas. As autoras Bittencourt e Bergamaschi falaram a respeito da temática indígena nas salas de aula e a autora Pereira da temática afro-brasileira.

Bittencourt escreve seu texto em 1994, dois anos antes da publicação das deis e diretrizes básicas da educação, publicada em 1996. Apesar de ser um texto escrito antes mesmo da publicação da lei, traz uma importante contribuição para contextualizar a falta dela já que as aldeias tem se deparado com um processo de educação formal. E como os índios entendem isso? Como um movimento pela manutenção de sua identidade social, cultural e étnica, onde tais povos mantêm sua identidade sem se isolar do contato com os brancos buscando formas de incorporar e dominar aspectos da cultura dos grupos dominadores.

A introdução de uma instituição escolar nas aldeias indígenas não ocorre, no entanto, sem conflitos, e o papel da escola é percebido, portanto, de forma ambígua e aparentemente contraditória, já que a escola pode servir como favorecedora e aceleradora da perda de uma cultura anterior, que é substituída por um saber escolar baseado no modelo europeu, mas ela pode também servir para ampliar as formas culturais de comunicação do índio.

Bittencourt ainda destaca o papel do ensino de História, nas escolas indígenas, que ora pode fazer com que se estabeleçam conflitos culturais, ora pode contribuir para a ampliação do universo cultural e político do índio, servindo como aquisição importante em suas novas formas de lutas de resistência. Segundo a autora, há grandes problemas para elaborar uma proposta de ensino de história para grupos indígenas que são tão heterogêneos e que apresentam registros e referenciais próprios indo de contramão a uma história sedimentada e europeizante. Tal autora crítica esta história por ela ser essencialista, estereotipada e excludente onde há uma oposição constante entre os dominantes e os dominados. Ela propõe uma história integradora por ser uma aproximação frutífera para ambos os grupos, considerando-se que, no processo de contato e conhecimento das diversidades de situação, se estabeleçam trocas com enriquecimento mútuo.

A autora ainda chama atenção para as próprias modificações que estão ocorrendo no campo historiográfico, como por exemplo, a abolição dos temas que legitimavam determinados setores da sociedade, cujas seleções temáticas se fundamentavam em concepções positivistas sobre o tempo e seus referenciais de mudanças, e, a interdiciplinaridade com outras ciências, como a sociologia e a antropologia, que em conjunto, passam a indentificar tais grupos como sociedades em movimento, e. també, a mudança das fontes que sai dos documentos escritos e vão para o oral, gestual, figurada, musical e rítmica além de escrita. De qualquer forma, introduzir o povo indígena no ensino significava estabelecer a relação entre a formação e a constituição da população e a história nacional, e começam a ser apontadas as diferenças entre os diversos grupos indígenas, começando a serem vistos em suas particularidades e não como um ser genérico e idêntico. Inicia-se, igualmente, a percepção de que os índios podem ser considerados como cidadãos brasileiros, com direitos à autonomia linguística, à preservação de seus territórios e às suas formas de viver.

Bittencourt, em seu texto, ressalta que nas aldeias onde a educação escolar formal foi introduzida, o ensino de História continua prevalecendo o ensino oficial, com datas cívicas e destaques para heróis, como por exemplo, os Terena de Mato Grosso do Sul, por estar próximas de centros urbanos, situação que acarreta contatos diários com a escolarização formal. Ela ainda cita uma situação oposta, que é a do grupo Krahó,Tocantins, que tem um relativo distanciamento dos brancos e a escola adota que deve ensinar a história dos brancos para que a aldeia possa estar mais informada sobre o mundo da cidade e possa estabelecer trocas, em todos os níveis, em uma situação de maior igualdade. Por fim, nesse movimento de pensar a escola indígena, a autora cita os Munduruku, no Pará, que vive uma situação diversa dos Terena e dos Krahô que alerta para o perigo de uma postura tradicional do ensino da História e da importância de incluir a história dos grupos indígenas nos currículos e sobre a possibilidade dos próprios índios escreverem sua história, partindo dos documentos escritos pelos brancos.

Bittencourt, atenta que para começar um trabalho educacional requer, desta forma, uma construção que aponte para a diversidade de propostas, respeitando a diversidade cultural e histórica de cada grupo, e, que o currículo não é um produto acabado, fechado, é um processo construído por professores indígenas e professores brancos para contrastar a existência de outras visões, já que uma uniformização não é possível, pois as realidades são distintas e a construção do ensino e aprendizagem da história escolar só poderão ser apreendidas e incorporadas pelos alunos se estiverem integradas à sua vivência.

À guisa de parar a nossa reflexão, ressalto que Bittencourt, destaca que para se pensar a construção de conteúdos para a História, são envolvidos três aspectos: a necessidade de se refletir sobre a história local ou do grupo, sobre a história do conjunto dos grupos indígenas e sobre a história dos brancos que deve abranger, por seu lado, a história dos contatos e relações entre índios e brancos e a da história ocidental cristã. Contudo, temos que nos atentar para algumas noções básicas do ensino de História que devem serem construídas: as noções de tempo e espaço (não o tempo cronológico, mas o mitológico e o espaço como um centralizador da posição da sociedade em suas relações com a natureza), de identidade (para situar a relação entre o indivíduo e a sociedade nacional) e de diferença (questão da alteridade) que merecem ser consideradas em suas dimensões mais amplas e perpassar os vários temas, enfoques e abordagens históricos para contribuir no sentido de valorizar um passado que tem sido desprezado.

Já Bergamaschi, também tratará da questão indígena, entretanto sobre o prisma da lei 11.645, que obriga o ensino da temática indígena nas escolas. A autora nesse seu trabalho, quer investigar como a temática é tratada na escola e como os índios se inserem nas discussões interculturais sem perder sua identidade, analisando tais coisas em duas escolas públicas de ensino fundamental de Porto Alegre, RS. A autora cita Nestor Garcia Canclini para justificar que os índios são os povos mais preparados para o diálogo intercultural, e que tal interculturalidade, não é só se dispor ao diálogo com o outro, mas é lançar mão de conhecimentos e saberes desse outro que permitam estabelecer e qualificar o diálogo.

Bergamaschi, chama a atenção para uma prática que vem se afirmando nas sociedades indígenas que é a educação escolar. No entanto, ressalva que a escola foi apropriada por cada grupo de acordo com suas possibilidades e conveniências. E assim como Bittencourt, ela concorda que a educação escolar para os índios é como uma aliada nas políticas de afirmação étnica e de dialógo com a sociedade com o objetivo de eliminar preconceitos que possam ter com relação a eles, seja uma visão exótica seja uma visão romântica. Assim, pensando nas imagens estereotipadas que os alunos associam aos indígenas, ta autora traz a reflexão de duas oficinas que realizou em duas escolas públicas de ensino fundamental das redes estadual e municipal de Porto Alegre, RS. A escola que teve um desempenho que me comoveu mais foi a da rede municipal, já que ela tem um contato com indíos da tribo Kaingang. Assim, me deterei nela.

Na primeira oficina, denominada “Discussão através de imagens”, foi usada para refletir sobre o índio buscando identificar e compreender o que muda e o que permanece nos usos imaginético e representativo, descobrindo que continua sendo permanente no imaginário o índio como exótico, dominado, e que, em nenhuma das representações os alunos mostram ter visto imagens nos livros que remetem aos povos indígenas na situação social contemporânea. Esse índio, segundo Bergamaschi, é um objeto de conhecimento e celebração num espaço delimitado nos calendários escolares, e quase sempre amalgamado à natureza e reconhecido por atributos como alegria, ingenuidade, liberdade, nos causando a impossibilidade de vermos indígenas em contextos urbanos, participando de atividades comerciais. E tal visão deformada dos indígenas se perpetua justamente pelo fato da nossa história ser contada até hoje a partir da visão do colonizador.

Já na segunda oficina, “Discussão através do texto”, foi feita a leitura de trechos selecionados do livro Meu avô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, escrito por um índio Munduruku, e tinha o intuito de abordar a temática indígena através de leitura e questionamentos, proporcionando um reencontro dos alunos com suas possíveis ancestralidades ameríndias.

Para concluir, vale ressaltar algumas questões importantes. Em primeiro, o estudo da história e da cultura indígena na escola, além de mostrar os povos ameríndios com respeito e dignidade, coloca-os em pé de igualdade com os demais povos e sociedades estudadas e permite que se pense nas continuidades que nos afetam. Em segundo, que na escola municipal, os alunos têm a oportunidade de conviver semanalmente com um grupo de pessoas kaingang, situação que vai modificando a visão de povos indígenas que os estudantes tinham conseguindo estabelecer relações entre sua vida e a realidade indígena, pois conversam com essas pessoas, compartilhando tempos escolares. Em terceiro, que com as oficinas de cerâmica, há a valorização e a socialização dos saberes indígenas promovendo um diálogo intercultural dos indígenas com os estudantes, professores e funcionários, tornando a escola um local de encontro e de troca de saberes. Assim, tanto a escola ressignifica suas concepções em relação aos indígenas, quanto há uma ressignificação da arte de fabricar cerâmica, quase perdida pelos Kaingang. Enfim, essas oficinas se tornam um espaço respeitoso de relações interculturais, onde alunos não-indígenas podem aprender, ensinar e se identificar com os saberes indígenas que ali estão presentes. Assim como os não-indígenas estão aprendendo com os indígenas nas oficinas, estes também aprendem muito nessa interação.

Já o texto de Pereira vem tratar da lei nº 10.639, de 2003, que veio para tornar obrigatória o ensino de história e de cultura afro-brasileira e africana na educação básica, fazendo uma crítica a um ensino de história baseado numa perspectiva eurocêntrica, em que tais histórias e culturas apareciam de maneira esteriotipada. Contudo, esta nova regulamentação não está apenas no conteúdo pressuposto, mas também nas prováveis formas de recepção pelos docentes da educação básica, que é diverso.
Pereira ressalta que propor algumas temáticas ao campo da História, não era nenhuma novidade, e que muitos docentes, mesmo antes da edição dessa regulamentação legal, já desenvolviam propostas para a desconstrução de estereótipos, permitindo que os alunos construíssem novas concepções acerca dos processos históricos, do significado do advento de novos sujeitos sociais e das interações culturais pautadas pela valorização da pluralidade cultural. A novidade, seria então, a obrigatoriedade de inserir determinados conteúdos históricos presentes de maneira dispersa no campo do ensino de história e de se valorizar temáticas sub-representadas ou abordadas de maneira equivocada para a educação básica, exigida, segundo Pereira, num contexto em que se lutava pela flexibilização curricular e pela afirmação da autonomia docente para a democratização da escola como instituição social. Enfim, com essa lei, segundo Pereira, fica instituído um cenário instigante,heterogêneo e paradoxal, marcado por contradições e com desdobramentos que fazem sentir a emergência das várias e diversas propostas, ações, inquietações e dilemas no campo do ensino de história.

A autora ainda trata no seu texto que tal lei foi seguida pela publicação das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana”, em outubro de 2004, que apresenta dimensões normativas, sugerindo referências, formas de abordagem, conteúdos programáticos e valores para a ação docente, ressalvando um trabalho interdisciplinar e de uma reconfiguração das concepções de história, em sintonia com o pressuposto formativo e educativo da valorização da pluralidade cultural. O texto das “Diretrizes”, segundo Pereira, é estruturado em duas partes: na primeira parte, estão explicitas as questões introdutórias que justificam e fundamentam a promulgação da lei, como a demanda histórica da população afro-descendente pela implementação de políticas de reparação e valorização de sua história, cultura e identidade; a demanda da comunidade afro-brasileira pela valorização e afirmação de direitos; o reconhecimento e o respeito às pessoas negras; a necessidade de uma “reeducação das relações entre negros e brancos”. E na segunda, são apresentadas as orientações e determinações normativas, expressas por meio de três princípios: a consciência política e histórica da diversidade brasileira, o fortalecimento de identidades e de direitos e as ações educativas de combate a discriminações.

Durante o restante do texto, a autora fará algumas considerações sobre a aplicabilidade da lei e de seus impactos na educação básica, em especial na prática docente, que ainda merece uma maior compreensão e problematização devido ao curto espaço de tempo da lei. Contudo, para Pereira, já se podemos identificar na recepção da lei por docentes algumas inquietudes principalmente conceituais, conteudistas, como o que é raça? O que é racismo? O que é anti-racismo? Como posso compreender a história do racismo? E do racismo brasileiro? O que é cultura? O que é identidade? Para a autora, tais questões revelam algumas fragilidades da formação superior em história, indicando, sobretudo, a precariedade da exploração da interdiciplinaridade entre a história, a sociologia e a antropologia e afirma que o profissional de história terá que ter uma compreensão mais substancial sobre o Brasil e enfrentar o desafio de que a compreensão do racismo brasileiro possa, por exemplo, promover ações docentes sustentadas e reflexivas, problematizadoras de situações vivenciadas no cotidiano escolar.
Pereira ainda destaca que há mais algumas inquietudes que são do campo da ação pedagógica e que nos indicam que os impactos da Lei 10.639/03 não recaem somente sobre os conteúdos, mas dizem respeito, também, à compreensão das finalidades do ensino de história e seus desafios, que não são pequenos. A autora afirma que não basta apenas introduzir conteúdos de história e cultura afro-brasileira ou africana para a superação das abordagens históricas europeizantes, mas que temos que promover um ensino-aprendizagem em que tal história não seja dicotomizadas, nem idealizadas, mas compreendidas em sua dinâmica e circularidade.

Pereira, atenta para a questão da identidade e afirma que as diferentes formas de expressão identitária não podem ser vistas como contrapostas ou adversas. Isso não implica tampouco que pelo ensino de história não sejam valorizadas as diferentes culturas, também compreendidas pela reflexão a respeito de suas singularidades. Mas isso não implica transformar o ensino de história numa ação pedagógica que tem por finalidade a formação de consciências identitárias. Enfim, a autora nos diz que com a lei 10.639, está prevista a abordagem da história e cultura afro-brasileira, que muitas vezes é traduzida pela apropriação positivada de componentes distintivos de suas tradições para a composição de um mosaico de registros afro-brasileiros no Brasil contemporâneo, resultando no reforço de um “jeito próprio de ser” do afro-brasileiro, que coloca-os como vítimas e essencialmente importantes para nós, por terem deixados certas tradições.


Para amarrar as idéias do textos, o que os três textos trazem para nós é uma crítica à uma história europeizante, dividida em quatro partes, e estereotipada. Assim, precisamos de uma renovação no campo historiográfico, para não dar voz somente aos dominantes, aos heróis, ou aos dominados. Não podemos ter essas polarizações e dicotomias. Temos que ter um ensino de história voltado para uma compreensão dos processos e das interpretações históricas, e não preocupado com o passar conteúdo. Devemos sempre lembrar que o currículo é sempre uma tradição inventada, datado. E que por isso não é fechado. Ele deve sempre estar em constante movimento para ser compreendido e adequado de acordo com a vivência e realidade do aluno. Contudo, sabemos que tudo isso é um desafio, e o momento nos pede que enfrentemos o desafio do debate, da atualização historiográfica e da troca de experiências já que a docência é uma profissão que se aprende também através da prática cotidiana. 

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