Neste texto, trataremos de duas questões legais - as leis
10.639/03 e 11.645/08- que dizem respeito aos conteúdos históricos
e normativas programáticas quanto ao currículo escolar de História.
A lei 10.639 regulamenta a obrigatoriedade do ensino da tématica
africana, e, a lei 11.645 torna obrigatório o ensino da temática
indígena, nas escolas públicas e privadas para a educação básica.
Vale ressalvar que não há nenhuma lei que trate da obrigatoriedade
de algum tema histórico a não ser estas duas. Portanto, o professor
tem uma autonomia para conseguir fugir da história europeizante e
quadripartida. Vale ressalvar também que tais leis são uma forma
política de tais movimentos étnicos de garantirem uma afirmação
identitária frente ao exclusivismo que vinha e vem ocorrendo a estes
perante ao conjunto da sociedade. Chamarei para dialogar as autoras
Circe Bittencourt, Maria Bergamaschi e Junia Sales Pereira. Ambas são
historiadoras e fazem uma importante reflexão sobre as questões de
tais leis e alguns problemas quanto a recepção delas. As autoras
Bittencourt e Bergamaschi falaram a respeito da temática indígena
nas salas de aula e a autora Pereira da temática afro-brasileira.
Bittencourt escreve seu texto em 1994, dois anos antes da publicação
das deis e diretrizes básicas da educação, publicada em 1996.
Apesar de ser um texto escrito antes mesmo da publicação da lei,
traz uma importante contribuição para contextualizar a falta dela
já que as aldeias tem se deparado com um processo de educação
formal. E como os índios entendem isso? Como um movimento pela
manutenção de sua identidade social, cultural e étnica, onde tais
povos mantêm sua identidade sem se isolar do contato com os brancos
buscando formas de incorporar e dominar aspectos da cultura
dos grupos dominadores.
A introdução de uma instituição escolar nas aldeias
indígenas não ocorre, no entanto, sem conflitos, e o papel
da escola é percebido, portanto, de forma ambígua e
aparentemente contraditória, já que a escola pode servir como
favorecedora e aceleradora da perda de uma cultura anterior,
que é substituída por um saber escolar baseado no modelo
europeu, mas ela pode também servir para ampliar as formas
culturais de comunicação do índio.
Bittencourt ainda destaca o papel do ensino de História, nas
escolas indígenas, que ora pode fazer com que se estabeleçam
conflitos culturais, ora pode contribuir para a ampliação do
universo cultural e político do índio, servindo como aquisição
importante em suas novas formas de lutas de resistência.
Segundo a autora, há grandes problemas para elaborar uma proposta de
ensino de história para grupos indígenas que são tão heterogêneos
e que apresentam registros e referenciais próprios indo de contramão
a uma história sedimentada e europeizante. Tal autora crítica esta
história por ela ser essencialista, estereotipada e excludente onde
há uma oposição constante entre os dominantes e os dominados. Ela
propõe uma história integradora por ser uma aproximação
frutífera para ambos os grupos, considerando-se que, no processo
de contato e conhecimento das diversidades de situação, se
estabeleçam trocas com enriquecimento mútuo.
A autora ainda chama atenção para as próprias modificações que
estão ocorrendo no campo historiográfico, como por exemplo, a
abolição dos temas que legitimavam determinados setores da
sociedade, cujas seleções temáticas se fundamentavam em
concepções positivistas sobre o tempo e seus referenciais
de mudanças, e, a interdiciplinaridade com outras ciências, como a
sociologia e a antropologia, que em conjunto, passam a indentificar
tais grupos como sociedades em movimento, e. també, a mudança das
fontes que sai dos documentos escritos e vão para o oral, gestual,
figurada, musical e rítmica além de escrita. De qualquer
forma, introduzir o povo indígena no ensino significava
estabelecer a relação entre a formação e a constituição
da população e a história nacional, e começam a ser
apontadas as diferenças entre os diversos grupos indígenas,
começando a serem vistos em suas particularidades e não
como um ser genérico e idêntico. Inicia-se, igualmente, a
percepção de que os índios podem ser considerados como
cidadãos brasileiros, com direitos à autonomia linguística, à
preservação de seus territórios e às suas formas de viver.
Bittencourt, em seu texto, ressalta que nas aldeias onde a
educação escolar formal foi introduzida, o ensino de História
continua prevalecendo o ensino oficial, com datas cívicas e
destaques para heróis, como por exemplo, os Terena de Mato Grosso do
Sul, por estar próximas de centros urbanos, situação que acarreta
contatos diários com a escolarização formal. Ela ainda cita uma
situação oposta, que é a do grupo Krahó,Tocantins, que tem um
relativo distanciamento dos brancos e a escola adota que deve
ensinar a história dos brancos para que a aldeia possa
estar mais informada sobre o mundo da cidade e possa
estabelecer trocas, em todos os níveis, em uma situação de
maior igualdade. Por fim, nesse movimento de pensar a escola
indígena, a autora cita os Munduruku, no Pará, que vive uma
situação diversa dos Terena e dos Krahô que alerta para o
perigo de uma postura tradicional do ensino da História e da
importância de incluir a história dos grupos indígenas nos
currículos e sobre a possibilidade dos próprios índios
escreverem sua história, partindo dos documentos escritos
pelos brancos.
Bittencourt, atenta que para começar um trabalho educacional
requer, desta forma, uma construção que aponte para a
diversidade de propostas, respeitando a diversidade cultural e
histórica de cada grupo, e, que o currículo não é um produto
acabado, fechado, é um processo construído por professores
indígenas e professores brancos para contrastar a existência de
outras visões, já que uma uniformização não é possível, pois
as realidades são distintas e a construção do ensino e
aprendizagem da história escolar só poderão ser apreendidas e
incorporadas pelos alunos se estiverem integradas à sua vivência.
À guisa de parar a nossa reflexão, ressalto que Bittencourt,
destaca que para se pensar a construção de conteúdos para a
História, são envolvidos três aspectos: a necessidade de se
refletir sobre a história local ou do grupo, sobre a
história do conjunto dos grupos indígenas e sobre a
história dos brancos que deve abranger, por seu lado, a
história dos contatos e relações entre índios e brancos e
a da história ocidental cristã. Contudo, temos que nos atentar
para algumas noções básicas do ensino de História que devem
serem construídas: as noções de tempo e espaço (não o tempo
cronológico, mas o mitológico e o espaço como um centralizador da
posição da sociedade em suas relações com a natureza), de
identidade (para situar a relação entre o indivíduo e a sociedade
nacional) e de diferença (questão da alteridade) que merecem
ser consideradas em suas dimensões mais amplas e perpassar os
vários temas, enfoques e abordagens históricos para contribuir
no sentido de valorizar um passado que tem sido desprezado.
Já Bergamaschi, também tratará da questão indígena, entretanto
sobre o prisma da lei 11.645, que obriga o ensino da temática
indígena nas escolas. A autora nesse seu trabalho, quer investigar
como a temática é tratada na escola e como os índios se inserem
nas discussões interculturais sem perder sua identidade, analisando
tais coisas em duas escolas públicas de ensino fundamental de
Porto Alegre, RS. A autora cita Nestor Garcia Canclini para
justificar que os índios são os povos mais preparados para o
diálogo intercultural, e que tal interculturalidade, não é só se
dispor ao diálogo com o outro, mas é lançar mão de conhecimentos
e saberes desse outro que permitam estabelecer e qualificar o
diálogo.
Bergamaschi, chama a atenção para uma prática que vem se
afirmando nas sociedades indígenas que é a educação escolar. No
entanto, ressalva que a escola foi apropriada por cada grupo de
acordo com suas possibilidades e conveniências. E assim como
Bittencourt, ela concorda que a educação escolar para os índios é
como uma aliada nas políticas de afirmação étnica e de dialógo
com a sociedade com o objetivo de eliminar preconceitos que
possam ter com relação a eles, seja uma visão exótica seja uma
visão romântica. Assim, pensando nas imagens estereotipadas que
os alunos associam aos indígenas, ta autora traz a reflexão de
duas oficinas que realizou em duas escolas públicas de ensino
fundamental das redes estadual e municipal de Porto Alegre, RS. A
escola que teve um desempenho que me comoveu mais foi a da rede
municipal, já que ela tem um contato com indíos da tribo Kaingang.
Assim, me deterei nela.
Na primeira oficina, denominada “Discussão através de imagens”,
foi usada para refletir sobre o índio buscando identificar e
compreender o que muda e o que permanece nos usos imaginético e
representativo, descobrindo que continua sendo permanente no
imaginário o índio como exótico, dominado, e que, em nenhuma das
representações os alunos mostram ter visto imagens nos livros que
remetem aos povos indígenas na situação social contemporânea.
Esse índio, segundo Bergamaschi, é um objeto de conhecimento e
celebração num espaço delimitado nos calendários escolares, e
quase sempre amalgamado à natureza e reconhecido por atributos como
alegria, ingenuidade, liberdade, nos causando a impossibilidade de
vermos indígenas em contextos urbanos, participando de
atividades comerciais. E tal visão deformada dos indígenas se
perpetua justamente pelo fato da nossa história ser contada até
hoje a partir da visão do colonizador.
Já na segunda oficina, “Discussão através do texto”, foi
feita a leitura de trechos selecionados do livro Meu avô Apolinário: um mergulho no rio da
(minha) memória, escrito por um índio Munduruku, e tinha o
intuito de abordar a temática indígena através de leitura
e questionamentos, proporcionando um reencontro dos alunos com
suas possíveis ancestralidades ameríndias.
Para concluir, vale ressaltar algumas questões importantes. Em
primeiro, o estudo da história e da cultura indígena na escola,
além de mostrar os povos ameríndios com respeito e dignidade,
coloca-os em pé de igualdade com os demais povos e sociedades
estudadas e permite que se pense nas continuidades que nos afetam.
Em segundo, que na escola municipal, os alunos têm a oportunidade de
conviver semanalmente com um grupo de pessoas kaingang, situação
que vai modificando a visão de povos indígenas que os
estudantes tinham conseguindo estabelecer relações entre sua vida
e a realidade indígena, pois conversam com essas pessoas,
compartilhando tempos escolares. Em terceiro, que com as oficinas
de cerâmica, há a valorização e a socialização dos saberes
indígenas promovendo um diálogo intercultural dos indígenas
com os estudantes, professores e funcionários, tornando a escola um
local de encontro e de troca de saberes. Assim, tanto a escola
ressignifica suas concepções em relação aos indígenas,
quanto há uma ressignificação da arte de fabricar cerâmica, quase
perdida pelos Kaingang. Enfim, essas oficinas se tornam um espaço
respeitoso de relações interculturais, onde alunos não-indígenas
podem aprender, ensinar e se identificar com os saberes indígenas
que ali estão presentes. Assim como os não-indígenas estão
aprendendo com os indígenas nas oficinas, estes também aprendem
muito nessa interação.
Já o texto de Pereira vem tratar da lei nº
10.639, de 2003, que veio para tornar obrigatória o ensino de
história e de cultura afro-brasileira e africana na educação
básica, fazendo uma crítica a um ensino de história baseado numa
perspectiva eurocêntrica, em que tais histórias e culturas
apareciam de maneira esteriotipada. Contudo, esta nova regulamentação
não está apenas no conteúdo pressuposto, mas também nas prováveis
formas de recepção pelos docentes da educação básica, que é
diverso.
Pereira ressalta que propor algumas temáticas ao campo da História,
não era nenhuma novidade, e que muitos docentes, mesmo antes da
edição dessa regulamentação legal, já desenvolviam propostas
para a desconstrução de estereótipos, permitindo que os alunos
construíssem novas concepções acerca dos processos históricos, do
significado do advento de novos sujeitos sociais e das interações
culturais pautadas pela valorização da pluralidade cultural. A
novidade, seria então, a obrigatoriedade de inserir determinados
conteúdos históricos presentes de maneira dispersa no campo do
ensino de história e de se valorizar temáticas sub-representadas ou
abordadas de maneira equivocada para a educação básica, exigida,
segundo Pereira, num contexto em que se lutava pela flexibilização
curricular e pela afirmação da autonomia docente para a
democratização da escola como instituição social. Enfim, com essa
lei, segundo Pereira, fica instituído um cenário
instigante,heterogêneo e paradoxal, marcado por contradições e com
desdobramentos que fazem sentir a emergência das várias e diversas
propostas, ações, inquietações e dilemas no campo do ensino de
história.
A autora ainda trata no seu texto que tal lei foi seguida pela
publicação das “Diretrizes curriculares nacionais para a educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana”, em outubro de 2004, que apresenta
dimensões normativas, sugerindo referências, formas de abordagem,
conteúdos programáticos e valores para a ação docente,
ressalvando um trabalho interdisciplinar e de uma reconfiguração
das concepções de história, em sintonia com o pressuposto
formativo e educativo da valorização da pluralidade cultural. O
texto das “Diretrizes”, segundo Pereira, é estruturado em duas
partes: na primeira parte, estão explicitas as questões
introdutórias que justificam e fundamentam a promulgação da lei,
como a demanda histórica da população afro-descendente pela
implementação de políticas de reparação e valorização de sua
história, cultura e identidade; a demanda da comunidade
afro-brasileira pela valorização e afirmação de direitos; o
reconhecimento e o respeito às pessoas negras; a necessidade de uma
“reeducação das relações entre negros e brancos”. E na
segunda, são apresentadas as orientações e determinações
normativas, expressas por meio de três princípios: a consciência
política e histórica da diversidade brasileira, o fortalecimento de
identidades e de direitos e as ações educativas de combate a
discriminações.
Durante o restante do texto, a autora fará algumas considerações
sobre a aplicabilidade da lei e de seus impactos na educação
básica, em especial na prática docente, que ainda merece uma maior
compreensão e problematização devido ao curto espaço de tempo da
lei. Contudo, para Pereira, já se podemos identificar na recepção
da lei por docentes algumas inquietudes principalmente conceituais,
conteudistas, como o que é raça? O que é racismo? O que é
anti-racismo? Como posso compreender a história do racismo? E do
racismo brasileiro? O que é cultura? O que é identidade? Para a
autora, tais questões revelam algumas fragilidades da formação
superior em história, indicando, sobretudo, a precariedade da
exploração da interdiciplinaridade entre a história, a sociologia
e a antropologia e afirma que o profissional de história terá que
ter uma compreensão mais substancial sobre o Brasil e enfrentar o
desafio de que a compreensão do racismo brasileiro possa, por
exemplo, promover ações docentes sustentadas e reflexivas,
problematizadoras de situações vivenciadas no cotidiano escolar.
Pereira ainda destaca que há mais algumas inquietudes que são do
campo da ação pedagógica e que nos indicam que os impactos da Lei
10.639/03 não recaem somente sobre os conteúdos, mas dizem
respeito, também, à compreensão das finalidades do ensino de
história e seus desafios, que não são pequenos. A autora afirma
que não basta apenas introduzir conteúdos de história e cultura
afro-brasileira ou africana para a superação das abordagens
históricas europeizantes, mas que temos que promover um
ensino-aprendizagem em que tal história não seja dicotomizadas, nem
idealizadas, mas compreendidas em sua dinâmica e circularidade.
Pereira, atenta para a questão da identidade e afirma que as
diferentes formas de expressão identitária não podem ser vistas
como contrapostas ou adversas. Isso não implica tampouco que pelo
ensino de história não sejam valorizadas as diferentes culturas,
também compreendidas pela reflexão a respeito de suas
singularidades. Mas isso não implica transformar o ensino de
história numa ação pedagógica que tem por finalidade a formação
de consciências identitárias. Enfim, a autora nos diz que com a lei
10.639, está prevista a abordagem da história e cultura
afro-brasileira, que muitas vezes é traduzida pela apropriação
positivada de componentes distintivos de suas tradições para a
composição de um mosaico de registros afro-brasileiros no Brasil
contemporâneo, resultando no reforço de um “jeito próprio de
ser” do afro-brasileiro, que coloca-os como vítimas e
essencialmente importantes para nós, por terem deixados certas
tradições.
Para amarrar as idéias do textos, o que os três textos trazem para
nós é uma crítica à uma história europeizante, dividida em
quatro partes, e estereotipada. Assim, precisamos de uma renovação
no campo historiográfico, para não dar voz somente aos dominantes,
aos heróis, ou aos dominados. Não podemos ter essas polarizações
e dicotomias. Temos que ter um ensino de história voltado para uma
compreensão dos processos e das interpretações históricas, e não
preocupado com o passar conteúdo. Devemos sempre lembrar que o
currículo é sempre uma tradição inventada, datado. E que por isso
não é fechado. Ele deve sempre estar em constante movimento para
ser compreendido e adequado de acordo com a vivência e realidade do
aluno. Contudo, sabemos que tudo isso é um desafio, e o momento nos
pede que enfrentemos o desafio do debate, da atualização
historiográfica e da troca de experiências já que a docência é
uma profissão que se aprende também através da prática cotidiana.
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