quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Formação e saberes docente: a questão da memória e do ensino de História


Temos que refletir um pouco sobre o profissional da educação, suas atribuições e competências, e, sobre a sua formação, enfim, sobre os saberes que envolvem a prática docente. Segundo Tardif (p.211), a noção de “saber” tem que ser entendida em seu sentido mais amplo, isto é, aquele que engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades e as atitudes dos docentes. Para este autor, os saberes que servem de base para o ensino são, a um só tempo, existenciais (o professor pensa a partir de sua história de vida, seja ela intelectual, emocional, afetiva, pessoal e interpessoal), sociais (os saberes são provenientes de diversas fontes de socialização como a família, a escola, a universidade etc, e, adquiridos em temporalidades sociais diferentes: na infância, na escola, na formação profissional, na carreira) e pragmáticos (os saberes que servem de base ao ensino estão intimamente ligados tanto ao trabalho quanto ao trabalhador, isto é, o trabalho é [trans]formado e [trans]formador pelo e do homem). Assim, para este autor, essa tríade, demonstra a dimensão temporal do saber do professor. Em outras palavras, o que o autor nos diz é que os diversos saberes dos professores são adquiridos ao longo da sua história de vida, e, que não são todos produzidos por eles, mas são exteriores à profissão, já que podem vir da vida individual, da social, da escola, dos professores,etc.
Sabemos que a historiografia predominante mantém ainda uma idéia de progresso e determinismo por ser linear “ que leva o homem das cavernas pré-históricas até a gloria da pós-modernidade” (Fontana, p. 276). Com essa história que é linear, determinista, mecanicista e progressista, perdemos várias possibilidades e perspectivas de interpretações possíveis. A história linear só dá voz aos vencedores o que faz com que não tenhamos a visão dos vencidos. Enfim, o que este tipo de história faz é causar silenciamentos, previsões e uma única perspectiva de realidade, e Fontana (idem, p.268), diz que a crise que a ciência histórica do nosso tempo enfrenta é justamente um reflexo das expectativas de futuro dessa história linear que parece permitir que se faça previsões do que está porvir. No entanto, este mesmo autor nos chama atenção para este fato, já que o historiador reflete o tempo do presente ao reinterpretar o passado. Fomos formados por essa tendência histórica linear, mas devemos pensar como escapar dela ao ensinar para os nossos alunos. E como faremos isto? Parece que o importante aqui é chamar atenção para alguns problemas dessa “história única” da qual fomos vítimas e cúmplices.
Devemos, como Fontana disse, trocar História por histórias, assim, sairemos de uma história mecanicista e única e descobriremos que o mundo é muito mais complexo do que esta visão determinista propõe. Então, conseguiremos construir interpretações mais realistas e daremos voz aos esquecidos pela história tradicional que só pensa nos grandes feitos e feitores.
Devemos também buscar uma nova forma de aproximação do estudo do acontecimento, isto é, a forma de relacionar os fatos concretos com o contexto teórico que o explica, já que normalmente pegamos um modelo interpretativo e tentamos enquadrar fatos que se enquadram perfeitamente, e, dá legitimidade ao modelo. Fontana diz que para resolvermos este problema, o movimento deveria ser ao contrário, isto é, deveria partir do fato concreto para colocá-lo á prova e assim teremos algumas expectativas interessantes.
O terceiro e último problema dessa história linear é a forma como se explica as ações dos homens do passado, racionalizando-as e atualizando-as. Devemos abandoná-la e tentar descobrir o que estas pessoas pensavam, sentiam, temiam, pois só assim conseguiremos entendê-las.
Em suma, o que esta história provoca, consciente ou inconscientemente, é o pensamento da história como verdade. Sabemos que a verdade não existe e que o real não é real. Em nossas discussões e de acordo com leituras, sabemos que a história não é uma verdade única, ela é suscetível ao erro, pois se tem várias interpretações de um dado fato. Costumo brincar que a história é uma verdade porque a interpretação pode até mudar, mas o fato histórico não, ele é inalterável. Sendo assim, como fica o nosso saber-fazer? Fontana, sendo feliz em seu pensamento, descreve a história como sendo uma memória coletiva que atribui uma identidade à sociedade humana, e, descreve a memória como sendo uma construção a partir de fragmentos de conhecimento. Se pensarmos que fazemos interpretações a partir de fragmentos de conhecimento que já são interpretações que alguém já fez, ensinar história fica um pouco mais fácil.
Temos também enfatizado bastante, em nossas discussões, a questão de que se a formação que recebemos na graduação do curso de História é suficiente e abrangente para formar um bom profissional. Sobre a formação do professor, aprendemos que a faculdade é apenas um dos instrumentos capacitacionais desse profissional. Não é o único, não é o primeiro e nem o último. Digamos assim, que o ensino superior é a instituição que por ter uma noção clara do seu papel formador, tenta tornar a educação um conhecimento prático e inteligível para formar os professores. Entretanto, não tem como formar tais profissionais então pouco tempo, e, mesmo se passassemos mais anos estudando não seria suficiente, pois lidamos com seres humanos, que são tão complexos de entender. O que eu quero dizer, é que não se tem “receita de bolo” ou um manual que ensine como lidar com o ser humano, que devido à capacidade de poder ser diferente uns dos outros, isto nos incapacita de enquadra-los em uma categoria que dê conta de agrupar todas as suas especificidades e de tentar prever como agiram em dadas circunstâncias. Enfim, o período no curso de graduação é relativamente pequeno para que aprendamos a totalidade do nosso ofício, e comumente o que se ensina, é o básico das principais teorias, para que quando chegarmos á sala de aula, possamos escolher a melhor e usar naquele dado contexto. Falando em premonições, me remete ao que as pessoas normalmente pensavam sobre os historiadores, que é citado por Fontana, sobre o fato destes poderem prever o futuro, isto é as profecias. Este pensamento se encaixa muito bem no nosso pensamento, quando não conhecemos a realidade de uma sala. Tendemos normalmente a idealizar que a escola será transformada por nós, que os alunos nos obedecerão e serão interessados, que vamos ser recebidos bem pela comunidade escolar etc.
Então poderíamos dizer que a faculdade não é tão importante na formação docente? Claro que não. Pensar isto é erroneo, pois é na faculdade que pensamos sobre os problemas e teorias educacionais. É ela que dá a noção do “vir a ser” professor e contribui para o “saber-fazer”. O que normalmente acontece, e o que mais convém, é que tal formação teórica tenha de ser completada com uma formação prática, isto é, com uma experiência direta no trabalho, já que só seremos professores sendo. Então, a questão do tempo e do trabalho aparecem como essenciais para pensarmos o magistério. Falando nisso, como se dá o tempo de aprendizagem do trabalho? Qual seria a relação entre o tempo e a aprendizagem do trabalho? Bem, o trabalho, com o tempo, modifica o saber trabalhar, e, quando Tardif cita Marx para falar sobre como o trabalho é uma atividade que é transformada e transformadora do homem, julgo bastante feliz sua colocação. No magistério, os profissionais passam por um processo de escolarização em boa parte da aprendizagem de seu ofício, e, enfim, o professor é um dos poucos, se não o único profissional, que já ingressa no mercado de trabalho sem começar a trabalhar. Pensando dessa forma, concordo com alguns pensadores, como Tardif por exemplo, que acreditam que a formação profissional do professor é antecedida pela pré-profissional. Mas o que seria tais processos? E a memória, tem alguma função nisso tudo?
A “ trajetória pré-profissional” seria uma carga que trazemos do nosso processo de socialização e escolarização que marca e afeta nossas crenças, identidade, maneiras de ser, fazer e agir. Tardif aponta que em sua pesquisa, professores disseram que pessoas significativas da família e as relações com os professores (boas e más o que permitiu escolhas pedagógicas que julgam serem necessárias para o ensino) aparecem como fonte de inspiração em relação ao ensino escolar e ao saber-ensinar, e, na mesma pesquisa, alguns professores tendem a naturalizar e personalizar o seu saber profissional, dizendo que nasceram para ensinar, apresentando o saber ensinar como algo inato. Entretanto, Tardif chama atenção para este fato, dizendo que eles esquecem que são frutos de uma modelação ao longo da vida por sua própria história e por sua socialização. Portanto, a nossa vida profissional é marcada por nossos referenciais e pré-concepções de ensino e de aprendizagem da nossa vida escolar, já que passamos a maior parte de nossa vida nela, e isso reflete no “eu profissional” já que escolhemos a partir de nossas observações e conceitos, o que seria uma postura adequada a prática docente.
Já o processo de formação profissional, segundo Tardif, é marcado, principalmente, pelo tempo de trabalho, pela experiência da prática da profissão, pela passagem do estudante à professor. Tardif, nos esclarece que na trajetória profissional, os saberes dos professores são temporais, porque são utilizados e desenvolvidos ao longo da carreira. Isto é, o autor, parte da premissa que os saberes não são inatos, mas produzidos pela socialização, ou seja, através da participação dos indivíduos nos diversas instituições formativas, como a família, os amigos, a escolas etc. Normalmente, antes de entrarmos na sala de aula, tendemos a idealizar a escola e os alunos perfeitos, mas quando vamos lecionar vemos que não é tudo aquilo que esperávamos e que a realidade pode ser muito dura. É aqui, que o professor, no primeiro momento, vai se confrontar com a realidade e vai criticar o que aprendeu na faculdade, vai testar possibilidades e métodos de ensino, e depois em um segundo momento, vai buscar se afirmar e ser aceito pela comunidade escolar, adquirindo um sentimento de competência e de implantação das rotinas do trabalho, em outras palavras, na estruturação da prática, que exige que eles assimilem saberes práticos dos lugares de trabalho, com suas rotinas, valores e regras. Vale lembrar que o sentido de rotina que Tardif se refere é o mesmo de Giddens, onde a rotina é uma maneira de agir estável, uniforme, e, que torna-se parte integrante da atividade profissional, constituindo, desse modo, “maneiras de ser” do professor.
Para Tardif, é a carreira que nos diz sobre o saber- fazer. É no início da carreira que os saberes experienciais que são uma reativação e uma transformação dos saberes adquiridos nos processos anteriores de socialização (familiar, escolar e universitária) possibilitam e proporcionam aos professores certezas em relação ao trabalho, e, é com a evolução da carreira, que geralmente se tem um domínio maior do trabalho da profissão. O autor ressalta, o que nos é muito familiar quando estamos fazendo estágio, que é no início da carreira que se tem uma fase crítica, da sua formação como professor, pois é a partir das certezas e dos condicionantes da experiência prática que os professores questionam sua formação anterior. Segundo eles, muita coisa da profissão se aprende com a prática, pela experiência, no próprio trabalho. Uma outra questão interessante que também vivenciamos nos estágios, é a tentativa de se passar a experiência por meio de conselhos. Segundo Jorge Bondía, não dá para passarmos experiência para outra pessoa, pois o saber da experiência é um saber particular e pessoal, já que para ele, a experiência é o que nos acontece, e o saber de experiência é o sentido que atribuímos ao que nos acontece. Por isso, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não terão a mesma experiência, já que o acontecimento é comum, mas a experiência é singular. Contudo, a experiência e conselhos dos outros profissionais são uma fonte importante para a nossa formação, já que toda contribuição é válida, no entanto, temos que receber os conselhos, assimilá-los, criticá-los e assim ver se eles se encaixam na nossa perspectiva e realidade de ensino ou não.
Em resumo, vimos até aqui que o professor é um profissional que já é inserido no trabalho antes mesmo de iniciar-se como tal, graças à sua memória social e individual. Enfim, o papel da memória desempenha uma grande função em nosso processo de formação. Mas como assim? Já disse que nos inspiramos nas memórias de nossa vida escolar para refletirmos como vamos ser e fazer, ao lecionar, o que faz com que grande parte do nosso saber-fazer venha daí.. Sabendo que a memória está intrinsecamente ligada á História, e que esta representa uma memória coletiva e dá identidade à sociedade humana, a memória é uma construção a partir de fragmentos de conhecimento, e é uma interpretação da interpretação que já tivemos. Tal reinterpretação também ocorre com a história, já que interpretamos o passado com os olhos do presente. Não nascemos professores, nos tornamos, na medida em que somos produtos e produtores dos processos de socialização. Entretanto, o nosso saber-fazer não vem só da nossa memória escolar, vem da experiência, da prática de trabalho, e o tempo, como vimos, é muito importante nisso tudo.
Concluindo, acho que Fontana descreve e define o saber-fazer do historiador:
“ Na medida em que o historiador é quem melhor conhece a evolução da humanidade, quem sabe a mentira dos signos indicadores que marcam uma direção única e quem recorda os outros caminhos que conduziam a outros destinos distintos e talvez melhores, é a ele a quem toca, mais que a ninguém, denunciar os enganos e reanimar as esperanças para começar o mundo de novo. Falo de enganos, porque a história, praticada por mãos inábeis, pode ser uma arma destrutiva muito temível [...] Nós historiadores devemos combater as profecias paralisadoras da mundialização, com que se pretende substituir àquelas e, com maior empenho ainda, todas as aberrações que servem para justificar, em nome de preconceitos assentados na deformação da memória coletiva, as mais diversas formas de opressão e de extermínio, com o pretexto de superioridades raciais ou de civilização, seja laica ou religiosa. Não é uma tarefa fácil, porém vale a pena dedicar-se a ela […] não é só um trabalho [...]como também o meu modo de estar no mundo e de lutar com as armas do meu ofício contra todas as coisas que impedem que se realize uma sociedade onde haja […] ' a maior igualdade possível dentro de maior liberdade possível' ”. (p. 280-281)
Para finalizar, com esta fala bastante interessante e provocativa de Fontana, queria colocar algumas questões? Se somos historiadores e somos os que melhor conhecem a historicidade da humanidade, por que então continuamos mantendo uma história que ainda é representativa do porvir, do progresso, da verdade? Por que o professor não inova seus métodos? Creio que chegou a hora de usarmos as nossas melhores armas -as palavras- e pensar como solucionar os principais problemas que interferem na atividade docente.

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