Temos que refletir um pouco sobre
o profissional da educação, suas atribuições e competências, e,
sobre a sua formação, enfim, sobre os saberes que envolvem a
prática docente. Segundo Tardif (p.211), a noção de “saber”
tem que ser entendida em seu sentido mais amplo, isto é, aquele que
engloba os conhecimentos, as competências, as habilidades e as
atitudes dos docentes. Para este autor, os saberes que servem de base
para o ensino são, a um só tempo, existenciais (o professor pensa a
partir de sua história de vida, seja ela intelectual, emocional,
afetiva, pessoal e interpessoal), sociais (os saberes são
provenientes de diversas fontes de socialização como a família, a
escola, a universidade etc, e, adquiridos em temporalidades sociais
diferentes: na infância, na escola, na formação profissional, na
carreira) e pragmáticos (os saberes que servem de base ao ensino
estão intimamente ligados tanto ao trabalho quanto ao trabalhador,
isto é, o trabalho é [trans]formado e [trans]formador pelo e do
homem). Assim, para este autor, essa tríade, demonstra a dimensão
temporal do saber do professor. Em outras palavras, o que o autor nos
diz é que os diversos saberes dos professores são adquiridos ao
longo da sua história de vida, e, que não são todos produzidos por
eles, mas são exteriores à profissão, já que podem vir da vida
individual, da social, da escola, dos professores,etc.
Sabemos que a historiografia predominante mantém ainda uma idéia
de progresso e determinismo por ser linear “ que leva o homem das
cavernas pré-históricas até a gloria da pós-modernidade”
(Fontana, p. 276). Com essa história que é linear, determinista,
mecanicista e progressista, perdemos várias possibilidades e
perspectivas de interpretações possíveis. A história linear só
dá voz aos vencedores o que faz com que não tenhamos a visão dos
vencidos. Enfim, o que este tipo de história faz é causar
silenciamentos, previsões e uma única perspectiva de realidade, e
Fontana (idem, p.268), diz que a crise que a ciência histórica do
nosso tempo enfrenta é justamente um reflexo das expectativas de
futuro dessa história linear que parece permitir que se faça
previsões do que está porvir. No entanto, este mesmo autor nos
chama atenção para este fato, já que o historiador reflete o tempo
do presente ao reinterpretar o passado. Fomos formados por essa
tendência histórica linear, mas devemos pensar como escapar dela ao
ensinar para os nossos alunos. E como faremos isto? Parece que o
importante aqui é chamar atenção para alguns problemas dessa
“história única” da qual fomos vítimas e cúmplices.
Devemos, como Fontana disse, trocar História por histórias,
assim, sairemos de uma história mecanicista e única e descobriremos
que o mundo é muito mais complexo do que esta visão determinista
propõe. Então, conseguiremos construir interpretações mais
realistas e daremos voz aos esquecidos pela história tradicional que
só pensa nos grandes feitos e feitores.
Devemos também buscar uma nova forma de aproximação do estudo do
acontecimento, isto é, a forma de relacionar os fatos concretos com
o contexto teórico que o explica, já que normalmente pegamos um
modelo interpretativo e tentamos enquadrar fatos que se enquadram
perfeitamente, e, dá legitimidade ao modelo. Fontana diz que para
resolvermos este problema, o movimento deveria ser ao contrário,
isto é, deveria partir do fato concreto para colocá-lo á prova e
assim teremos algumas expectativas interessantes.
O terceiro e último problema dessa história linear é a forma como
se explica as ações dos homens do passado, racionalizando-as e
atualizando-as. Devemos abandoná-la e tentar descobrir o que estas
pessoas pensavam, sentiam, temiam, pois só assim conseguiremos
entendê-las.
Em suma, o que esta história provoca, consciente ou
inconscientemente, é o pensamento da história como verdade. Sabemos
que a verdade não existe e que o real não é real. Em nossas
discussões e de acordo com leituras, sabemos que a história não é
uma verdade única, ela é suscetível ao erro, pois se tem várias
interpretações de um dado fato. Costumo brincar que a história é
uma verdade porque a interpretação pode até mudar, mas o fato
histórico não, ele é inalterável. Sendo assim, como fica o nosso
saber-fazer? Fontana, sendo feliz em seu pensamento, descreve a
história como sendo uma memória coletiva que atribui uma identidade
à sociedade humana, e, descreve a memória como sendo uma construção
a partir de fragmentos de conhecimento. Se pensarmos que fazemos
interpretações a partir de fragmentos de conhecimento que já são
interpretações que alguém já fez, ensinar história fica um pouco
mais fácil.
Temos também enfatizado bastante, em nossas discussões, a questão
de que se a formação que recebemos na graduação do curso de
História é suficiente e abrangente para formar um bom profissional.
Sobre a formação do professor, aprendemos que a faculdade é apenas
um dos instrumentos capacitacionais desse profissional. Não é o
único, não é o primeiro e nem o último. Digamos assim, que o
ensino superior é a instituição que por ter uma noção clara do
seu papel formador, tenta tornar a educação um conhecimento prático
e inteligível para formar os professores. Entretanto, não tem como
formar tais profissionais então pouco tempo, e, mesmo se passassemos
mais anos estudando não seria suficiente, pois lidamos com seres
humanos, que são tão complexos de entender. O que eu quero dizer, é
que não se tem “receita de bolo” ou um manual que ensine como
lidar com o ser humano, que devido à capacidade de poder ser
diferente uns dos outros, isto nos incapacita de enquadra-los em uma
categoria que dê conta de agrupar todas as suas especificidades e de
tentar prever como agiram em dadas circunstâncias. Enfim, o período
no curso de graduação é relativamente pequeno para que aprendamos
a totalidade do nosso ofício, e comumente o que se ensina, é o
básico das principais teorias, para que quando chegarmos á sala de
aula, possamos escolher a melhor e usar naquele dado contexto.
Falando em premonições, me remete ao que as pessoas normalmente
pensavam sobre os historiadores, que é citado por Fontana, sobre o
fato destes poderem prever o futuro, isto é as profecias. Este
pensamento se encaixa muito bem no nosso pensamento, quando não
conhecemos a realidade de uma sala. Tendemos normalmente a idealizar
que a escola será transformada por nós, que os alunos nos
obedecerão e serão interessados, que vamos ser recebidos bem pela
comunidade escolar etc.
Então poderíamos dizer que a faculdade não é tão importante na
formação docente? Claro que não. Pensar isto é erroneo, pois é
na faculdade que pensamos sobre os problemas e teorias educacionais.
É ela que dá a noção do “vir a ser” professor e contribui
para o “saber-fazer”. O que normalmente acontece, e o que mais
convém, é que tal formação teórica tenha de ser completada com
uma formação prática, isto é, com uma experiência direta no
trabalho, já que só seremos professores sendo. Então, a questão
do tempo e do trabalho aparecem como essenciais para pensarmos o
magistério. Falando nisso, como se dá o tempo de aprendizagem do
trabalho? Qual seria a relação entre o tempo e a aprendizagem do
trabalho? Bem, o trabalho, com o tempo, modifica o saber trabalhar,
e, quando Tardif cita Marx para falar sobre como o trabalho é uma
atividade que é transformada e transformadora do homem, julgo
bastante feliz sua colocação. No magistério, os profissionais
passam por um processo de escolarização em boa parte da
aprendizagem de seu ofício, e, enfim, o professor é um dos poucos,
se não o único profissional, que já ingressa no mercado de
trabalho sem começar a trabalhar. Pensando dessa forma, concordo com
alguns pensadores, como Tardif por exemplo, que acreditam que a
formação profissional do professor é antecedida pela
pré-profissional. Mas o que seria tais processos? E a memória, tem
alguma função nisso tudo?
A “ trajetória pré-profissional” seria uma carga que trazemos
do nosso processo de socialização e escolarização que marca e
afeta nossas crenças, identidade, maneiras de ser, fazer e agir.
Tardif aponta que em sua pesquisa, professores disseram que pessoas
significativas da família e as relações com os professores (boas e
más o que permitiu escolhas pedagógicas que julgam serem
necessárias para o ensino) aparecem como fonte de inspiração em
relação ao ensino escolar e ao saber-ensinar, e, na mesma pesquisa,
alguns professores tendem a naturalizar e personalizar o seu saber
profissional, dizendo que nasceram para ensinar, apresentando o saber
ensinar como algo inato. Entretanto, Tardif chama atenção para este
fato, dizendo que eles esquecem que são frutos de uma modelação ao
longo da vida por sua própria história e por sua socialização.
Portanto, a nossa vida profissional é marcada por nossos
referenciais e pré-concepções de ensino e de aprendizagem da nossa
vida escolar, já que passamos a maior parte de nossa vida nela, e
isso reflete no “eu profissional” já que escolhemos a partir de
nossas observações e conceitos, o que seria uma postura adequada a
prática docente.
Já o processo de formação profissional, segundo Tardif, é
marcado, principalmente, pelo tempo de trabalho, pela experiência da
prática da profissão, pela passagem do estudante à professor.
Tardif, nos esclarece que na trajetória profissional, os saberes dos
professores são temporais, porque são utilizados e desenvolvidos ao
longo da carreira. Isto é, o autor, parte da premissa que os saberes
não são inatos, mas produzidos pela socialização, ou seja,
através da participação dos indivíduos nos diversas instituições
formativas, como a família, os amigos, a escolas etc. Normalmente,
antes de entrarmos na sala de aula, tendemos a idealizar a escola e
os alunos perfeitos, mas quando vamos lecionar vemos que não é tudo
aquilo que esperávamos e que a realidade pode ser muito dura. É
aqui, que o professor, no primeiro momento, vai se confrontar com a
realidade e vai criticar o que aprendeu na faculdade, vai testar
possibilidades e métodos de ensino, e depois em um segundo momento,
vai buscar se afirmar e ser aceito pela comunidade escolar,
adquirindo um sentimento de competência e de implantação das
rotinas do trabalho, em outras palavras, na estruturação da
prática, que exige que eles assimilem saberes práticos dos lugares
de trabalho, com suas rotinas, valores e regras. Vale lembrar que o
sentido de rotina que Tardif se refere é o mesmo de Giddens, onde a
rotina é uma maneira de agir estável, uniforme, e, que torna-se
parte integrante da atividade profissional, constituindo, desse modo,
“maneiras de ser” do professor.
Para Tardif, é a carreira que nos diz sobre o saber- fazer. É no
início da carreira que os saberes experienciais que são uma
reativação e uma transformação dos saberes adquiridos nos
processos anteriores de socialização (familiar, escolar e
universitária) possibilitam e proporcionam aos professores certezas
em relação ao trabalho, e, é com a evolução da carreira, que
geralmente se tem um domínio maior do trabalho da profissão. O
autor ressalta, o que nos é muito familiar quando estamos fazendo
estágio, que é no início da carreira que se tem uma fase crítica,
da sua formação como professor, pois é a partir das certezas e dos
condicionantes da experiência prática que os professores questionam
sua formação anterior. Segundo eles, muita coisa da profissão se
aprende com a prática, pela experiência, no próprio trabalho. Uma
outra questão interessante que também vivenciamos nos estágios, é
a tentativa de se passar a experiência por meio de conselhos.
Segundo Jorge Bondía, não dá para passarmos experiência para
outra pessoa, pois o saber da experiência é um saber particular e
pessoal, já que para ele, a experiência é o que nos acontece, e o
saber de experiência é o sentido que atribuímos ao que nos
acontece. Por isso, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo
acontecimento, não terão a mesma experiência, já que o
acontecimento é comum, mas a experiência é singular. Contudo, a
experiência e conselhos dos outros profissionais são uma fonte
importante para a nossa formação, já que toda contribuição é
válida, no entanto, temos que receber os conselhos, assimilá-los,
criticá-los e assim ver se eles se encaixam na nossa perspectiva e
realidade de ensino ou não.
Em resumo, vimos até aqui que o professor é um profissional que já
é inserido no trabalho antes mesmo de iniciar-se como tal, graças à
sua memória social e individual. Enfim, o papel da memória
desempenha uma grande função em nosso processo de formação. Mas
como assim? Já disse que nos inspiramos nas memórias de nossa vida
escolar para refletirmos como vamos ser e fazer, ao lecionar, o que
faz com que grande parte do nosso saber-fazer venha daí.. Sabendo
que a memória está intrinsecamente ligada á História, e que esta
representa uma memória coletiva e dá identidade à sociedade
humana, a memória é uma construção a partir de fragmentos de
conhecimento, e é uma interpretação da interpretação que já
tivemos. Tal reinterpretação também ocorre com a história, já
que interpretamos o passado com os olhos do presente. Não nascemos
professores, nos tornamos, na medida em que somos produtos e
produtores dos processos de socialização. Entretanto, o nosso
saber-fazer não vem só da nossa memória escolar, vem da
experiência, da prática de trabalho, e o tempo, como vimos, é
muito importante nisso tudo.
Concluindo, acho que Fontana descreve e define o saber-fazer do
historiador:
“ Na medida em que o historiador é quem melhor conhece a evolução
da humanidade, quem sabe a mentira dos signos indicadores que marcam
uma direção única e quem recorda os outros caminhos que conduziam
a outros destinos distintos e talvez melhores, é a ele a quem toca,
mais que a ninguém, denunciar os enganos e reanimar as esperanças
para começar o mundo de novo. Falo de enganos, porque a história,
praticada por mãos inábeis, pode ser uma arma destrutiva muito
temível [...] Nós historiadores devemos combater as profecias
paralisadoras da mundialização, com que se pretende substituir
àquelas e, com maior empenho ainda, todas as aberrações que servem
para justificar, em nome de preconceitos assentados na deformação
da memória coletiva, as mais diversas formas de opressão e de
extermínio, com o pretexto de superioridades raciais ou de
civilização, seja laica ou religiosa. Não é uma tarefa fácil,
porém vale a pena dedicar-se a ela […] não é só um trabalho
[...]como também o meu modo de estar no mundo e de lutar com as
armas do meu ofício contra todas as coisas que impedem que se
realize uma sociedade onde haja […] ' a maior igualdade possível
dentro de maior liberdade possível' ”. (p. 280-281)
Para finalizar, com esta fala bastante interessante e provocativa de
Fontana, queria colocar algumas questões? Se somos historiadores e
somos os que melhor conhecem a historicidade da humanidade, por que
então continuamos mantendo uma história que ainda é representativa
do porvir, do progresso, da verdade? Por que o professor não inova
seus métodos? Creio que chegou a hora de usarmos as nossas melhores
armas -as palavras- e pensar como solucionar os principais problemas
que interferem na atividade docente.
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