Joana d'Arc é, e se não é deve estar, entre os personagens
femininos mais conhecidos da história. Atualmente, segundo Amaral,
contam-se, espalhadas pelo mundo, 20 mil estátuas públicas, 800
biografias históricas, 52 filmes, centenas de peças de teatro,
romances, musica etc, e daí, podemos entender o quanto Joana é
conhecida e propagada para além da França.
Algumas pesquisas, como as de Winock (WINOCK apud AMARAL, p. 33),
tendem a afirmar que do século XVI ao século XVIII (ele denomina
esse período de século de inadequação ou esquecimento) a imagem
de Joana foi esquecida e só seria retomada no século XIX e XX
(Winock denomina este outro período como século de
rememoração-ativa) após a Revolução Francesa. Estas idéias,
normalmente tem sido alvo de críticas, pois segundo pesquisas de
Olivier Bouzy (BOUZY apud AMARAL, p. 33), há um grande interesse
desses séculos, considerados esquecedores, por Joana, fazendo
poemas, romances, músicas etc. Para Bouzy, o “esquecimento” de
Joana viria de uma escolha dos autores, que ao desejarem uma história
que não tivesse uma donzela, não queriam participar de tal
interpretação, vigente ao longo desses séculos. Enfim, o que Bouzy
afirma, é que o que foi deixado de lado não foi o personagem Joana,
mas a imagem que estes séculos veicularam nela.
Segundo Amaral (AMARAL, p. 56), os
revolucionários não podiam romper com o passado para não perderem
os referenciais e para isso resolveram resignificá-lo, assim como
dar um novo significado a alguns personagens de sua história. É
dessa forma que Joana deixa de ser renegada para ser valorizada e
passa a ser relacionada com os ideais revolucionários, tornando-se
assim uma heroína1
nacional. Entretanto, como Charmettes (CHARMETTES apud AMARAL p.68)
afirma, Joana não era uma heroína comum, ela tinha uma certa
superioridade sobre os demais heróis, pelo fato de ser uma heroína
histórica e não literária, isto é, seus feitos são verdadeiros e
verificáveis numa vasta documentação (biografias, processos etc) e
por ser uma oprimida já que era uma mulher e naquela época elas
eram submissas, portanto estavam ás margens da sociedade. Mas mesmo
sendo diferente nesses aspectos, ela mantinha algumas características
típicas ligadas aos heroísmo, como piedade, simplicidade,
honestidade, castidade, humildade (moral e não social), justiça,
prudência e coragem.
Winock e Krumeich (WINOCK, KRUMEICH apud AMARAL p.17), afirmam que
o grande responsável por transformar a imagem de Joana d'Arc fazendo
dela um dogma do heroísmo e do bom senso popular, além de ser a
propulsora do sentimento nacional, foi Michelet que à considerava
muito importante pois depois da Guerra dos Cem anos, a França
começou a caminhar para ser uma nação, e ela, era a representante
do povo, que por sua vez era a nação.
A revolução francesa passa a ser um divisor de águas: existe uma
Joana antes e outra depois da Revolução. A imagem de Joana d'Arc,
desde a idade média, era sempre associada a uma visão celeste, pela
questão de ouvir anjos, e também associada à imagem de guerreira,
por ter libertado a França da Inglaterra. E no século fim do século
XVII e início do XIX, torna-se uma heroína, quando os
revolucionários franceses a tomam como propulsora do nacionalismo
francês, ao aproximar a sua imagem ao terceiro Estado (povo) como
uma memória nacional a partir dos primórdios do nascimento da
liberdade. Enfim, foi no século XIX que são lançadas as bases para
uma nova interpretação da história de Joana que deixa de ser
lembrada como defensora da monarquia e começa a ser identificada
como uma representante do povo que irá lutar contra a tirania
absolutista, portanto, a favor da liberdade. Essa idéia, é
perfeitamente aceitável para Michelet (MICHELET apud AMARAL, p.
106-107), pois como a monarquia era o regime dominante no tempo que
Joana viveu e ela lutou para mantê-lo e ainda manter a mesma
dominação dinástica, por entender como uma luta pela liberdade dos
franceses diante dos ingleses, seria justo transpor esse ideal de
luta para a revolução. Portanto, para Michelet, Joana foi mais do
que a salvadora da França, foi uma mártir supliciada em nome da
liberdade, foi uma França escolhendo seu próprio destino.
No século XIX, como afirma Amaral (AMARAL, p.81-83), o termo herói
ganha novos significados. Antes ele era usado para designar os
semideuses da Antiguidade, e a partir deste século, passa a
denominar somente o personagem principal de uma narrativa, que
normalmente é aquela pessoa que encarna uma vontade coletiva em um
momento obscuro, renunciando a si mesmo para lutar contra a
individualidade. Entretanto, vários elementos atribuídos aos heróis
da Antiguidade são associados a ela, como o rápido aprendizado do
manuseamento de armas, a existência de objetos miraculosos (espada e
estandarte), existência de profecias e a presença da moderatio,
cuja função era a de zelar pela salvação do exército ao optar
por uma prudência defensiva, ou seja, tentar negociar com os
oponentes.
Retira-se também o foco do miraculoso e foca nas questões naturais
para explicar os fatos, pois se não a heroína perderia o seu
sentido. Ela tinha que ser humana, para ser real. “A ela não se
atribuia nenhum poder miraculoso, mas o seu hábito de começar o seu
discurso pelas palavras em nome de Deus ” o que faziam vê-la como
uma santa. Não há como falar de Joana d”Arc, sem deixarmos de
lembrar do caráter religioso que a impulsionava, porém o poder
dela, segundo Amaral (AMARAL, p.97), vinha da união de sua virtude
(entusiasmo), de sua superstição universal e da impaciência do
povo em esperar por socorro. Enfim, o que ela quer dizer, é que
Joana é heroína não por sua santidade, mas por ter reconhecido o
rei como legítimo governante e ter feito de tudo para lutar por esse
ideal. Acaba por assim, fazer uma Joana dessacralizada, que movida
pelo entusiasmo em cumprir a sua missão e não pela ajuda celeste
(sobrenatural), torna-se explicável e apreensível sob o ponto de
vista histórico e não mais do religioso.
Amaral (AMARAL, p.198-202) afirma que os modernos interpretaram ser
necessário uma separação entre Estado e religião, por isso a
história de Joana parece ser tão complexa. Quando eles privilegiam
o entusiasmo como força motriz da heroína, da-se à ela um aspecto
laico. Ainda segundo a autora, até mesmo o processo de canonização
é fruto dessa interpretação que projetava uma separação entre as
esferas sociais (religiosa, política, jurídica e econômica) ao
propor a separação do que é santo e do que é político, pois a
canonização só pode ser concluída quando se associou a causa e a
vida de Joana num propósito unicamente divino.
Em suma, a imagem que os pensadores faziam de Joana, comumente,
remetia a uma santa e ou guerreira, levando-se mais em conta os
aspectos sobrenaturais para explicar os seus feitos, como as vozes
que ela ouvia. Porém, com a modernidade, se viu necessário separar
a esfera religiosa e a esfera política possibilitando assim novas
interpretações sobre este personagem, e tais pensadores, tendem a
associar os seus feitos a uma noção de entusiasmo, para lhe dar um
caráter natural e humano, e fazê-la uma heroína laica e racional.
Segundo Amaral (AMARAL, p.201), com a valorização de seus aspectos
históricos, as suas particularidades são valorizadas, e passaremos
a ter várias “Joanas”, como “a Joana laica, a santa, a celta,
a protestante, a feminista, a esquerdista, a de extrema direita, a
druída, etc.”
1
Herói, para Campbell, é
a figura com nascimento humilde, mas milagroso, que ao passar por
grandes desafios demonstra provas de uma força sobre-humana. Após
uma batalha de vida ou morte, sempre sai triunfante contra as forças
do mal. O herói, para ele, seria um homem ou uma mulher que
conseguiu através de muito esforço, vencer suas limitações
históricas pessoais e locais. É como se o herói comportasse
dentro de si mesmo um guerreiro e um líder que nasceu para ser
útil à sociedade. Enfim, Campbell apresenta o herói como sendo um
ser humano que vai se construindo e se transformando de acordo com
sua experiência, que ao fim será caracterizado como um ser
heroico.
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